Sombras de Silêncio #148

Miguel deambulou depois pela solidão até chegar ao topo da colina, na praça da universidade. Sentou-se na escadaria, contemplando a torre ao seu lado, dorido e esfomeado. Não demorou muito até que os sentidos cedessem ao cansaço, esperançado por alimentar o espírito nalgum sonho reconfortante. Porém, acabou por ser acordado pela realidade.

– Vagabundo, isto é sítio de doutores, vai p’ra onde viestes. A escumalha ‘tá do outro lado – dizia-lhe um homem, já meio careca, de bigode apurado e com a farda da Guarda.

Como Miguel demorou a reagir, o homem começou então a pontapeá-lo levemente nas pernas. A inércia do rapaz, sujo, de cabelo empastado, barba irregular, roupa esburacada e já sem botões na camisa, convenceu o guarda que precisaria de se esforçar um pouco mais e empurrou-o pelas escadas, para espanto dos estudantes que passavam e que formaram desde logo um círculo de riso à volta da desgraça. Miguel, acidentado pelas dores, despertou pela violência e percebeu que estava rodeado de olhares trocistas, do alto das suas certezas familiares. Ergueu-se depois e tentou sair dali, mas o guarda trocou-lhe os passos ao dar-lhe um pontapé, fazendo-o tropeçar e cair para o arrependimento.

– Vai-te e não voltes mais! – completou o guarda.

Enquanto jazia estatelado, Miguel convenceu-se que teria mesmo de sair da cidade. Tentou levantar-se depois, mas a fraqueza física e as gargalhadas envolventes impeliam-no a rebaixar-se perante os píncaros da elite social. Foi então que uma voz se sobrepôs ao barulho, num tom grave e numa pronúncia que Miguel julgou estranha, mas que se entranhava no ouvido como se fosse um sermão de um padre.

– Mas afinal o que é que se passa aqui? Arredem-se para trás e deixem o coitado respirar!

O homem era de estatura média, cabelo negro revirado para trás, elegantíssimo no seu fato cinza-escuro, de cara severa e nariz proeminente.

– Senhor doutor, ele é um vadio, um escaravelho dos restos, um vómito do nada, um mendigo sem vergonha, à espera que os homens dignos lhe resolvam a vida e lhe alimentem o bucho preguiçoso. Pois eu digo que a esta gente não se lhe deve prestar ajuda já que eles nem vontade têm de compor uma palha no seu ninho. Vou mandá-lo à sua vida p’ra bem longe daqui – respondeu o guarda, melindrado.

Sombras de Silêncio #148

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