Sombras de Silêncio #144

Depois de vários passeios pela área circundante e de distintos momentos de espanto, Miguel sentou a fome num banco e teve o primeiro momento de arrependimento da audácia. Precisava de encontrar alguém que o ajudasse o mais depressa possível. Retornou depois pelo mesmo acesso e, definhando em vergonha, começou a questionar alguns transeuntes sobre onde poderia encontrar trabalho. Ao olhar desconfiado seguia-se quase sempre uma resposta negativa e poucos arriscavam mais conversa com um rapaz descomposto, confluência de trabalhos e maus augúrios. Pareceu a Miguel que o mundo se tinha desinteressado pelas maleitas dos desafortunados ou, no seu caso, dos infortúnios aleatórios dos incautos.

Miguel acabou por regressar à ponte de Santa Clara e seguiu depois a montante do rio, pela marginal, observando os homens e as embarcações que se dedicavam à faina piscatória, cobrando alimento à passagem das águas. Dirigiu-se então ao primeiro que ainda se encontrava com o barco na margem, amanhando tardiamente as redes e as canas para a pesca. Era um sujeito de cabelos encaracolados que lhe pendiam sobre os olhos sombrios e tinha uma barba comprida que lhe tapava a cara. Vestia uma camisola amarela, calças azuis de bombazina e calçava uns botins arregaçados até aos joelhos. Era alto, barrigudo e aparentava já ter ultrapassado a meia-idade. Miguel cumprimentou-o e perguntou-lhe se ele sabia onde poderia encontrar trabalho. O homem ergueu o olhar, passou a mão pelas barbas e vislumbrou uma oportunidade.

– Talvez se arranje qualquer coisa. Sabes pescar?

Miguel estranhou a pronúncia e não estava preparado para dar uma resposta apropriada que lhe abreviasse a certeza de um emprego desejado. Tropeçou nas palavras e acabou por revelar que gostava muito de comer peixe e que crescera ao lado de um rio. O homem questionou-o depois sobre a sua capacidade de aprendizagem e Miguel mostrou um sorriso resoluto.

– Mais vale uma mula nova do que um burro velho que aprenda línguas.

– Aprender línguas? Como assim? – perguntou Miguel, preocupado com a reviravolta inesperada da conversa, desconhecendo o provérbio e o seu significado.

Num primeiro momento, o homem estranhou a pergunta do rapaz, mas depois condescendeu. Perguntou-lhe ainda se conhecia as letras, os números e o dinheiro.

– Conheço algumas letras, mas consigo juntá-las muito bem. Sei contar… mais ou menos e já me passaram alguns tostões pelas mãos – respondeu Miguel, sorrindo o nervosismo.

Sombras de Silêncio #144

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