Miguel notou que as pessoas saíam de casa para os seus afazeres. Para que não o tomassem por vagabundo, decidiu voltar para a ponte, já que era do outro lado que se erguia a cidade e onde haveria de encontrar as oportunidades que perseguia de olhos vendados. Foi até ao meio da ponte e pôs-se a saborear a doce brisa que acompanhava o movimento das águas. Ignorando os transeuntes, estendeu os braços ao vento e, fechando os olhos, imaginou ser um pássaro nas alturas de um sonho. Ao despertar para uma vida nova, voltou-se e esboçou um sorriso. Ergueu depois o queixo e simulou uma pose mais séria, preocupado com a aparência. Não queria parecer pouco ajuizado logo à primeira vista.
Na cidade, os militares provocavam um grande alvoroço à sua passagem. Algumas pessoas acompanhavam o seu trajeto pelas ruas estreitas ao longe, enquanto outras somente se preocupavam em fechar o medo em casa, à espera que a revolta terminasse. Outros ainda celebravam alegremente a sua chegada, dispondo-se para ajudar no que fosse útil. Um pouco por todo o país, os militares foram tomando as maiores cidades com o apoio dos civis, revoltados contra os políticos que não conseguiram concretizar as promessas que levaram o povo a abraçar a República.
Sobre a ponte, as pessoas que passavam iam deixando as suas incertezas e preocupações. Miguel tentava percebê-las para se precaver de uma possível deterioração da situação. Por terras desconhecidas, qualquer brisa parece um furacão. Mas as dúvidas sobrelevavam-se às certezas e deixou-se ficar por mais algum tempo, expetante, de olhos postos nas águas que corriam lestas. Voltou-se depois para a cidade e ficou a contornar com o olhar as linhas que a desenhavam, procurando compreender o princípio e o fim da imagem encantadora. Parecia que as casas se sobrepunham delicadamente numa ambição desmedida em direção ao céu. No topo, erguia-se uma torre que parecia dominar o vale. Foi então que, por detrás da torre, o sol começou a espreitar. Miguel sentiu-se a renascer. Sabia pouco da vida e dos negócios dos homens; não tinha dinheiro e não sabia para onde ir nem o que fazer. Porém, todos os défices e agonias não lhe tiravam o sorriso; estava, final e orgulhosamente, entregue à sua vontade. Relembrou depois as palavras do avô e mentalizou-se que era pela força do trabalho que estruturaria a sua nova vida, faltando apenas encontrar alguém que lhe disponibilizasse um emprego remunerável ou lhe proviesse um teto e comida.