Enquanto todos os condicionalismos se misturavam e lhe organizavam a vida de forma mecânica, pela indiferença dos seus gostos ou vontades, Miguel sentiu uma vibração inebriante que lhe elevou o espírito a uma miríade de sentimentos e sensações que nunca experimentara. Jamais tinha sido sentido aquela liberdade solitária. O poder para fazer aquilo que a sua consciência mandava encobriu-lhe a razão e fê-lo sentar na escadaria, sem certezas sobre onde iria desembocar o seu atrevimento. O comboio foi ganhando cada vez mais velocidade e deixou Vila Nova da Rainha. Miguel levava apenas umas calças castanhas remendadas, uma camisa amarelada pela passagem do tempo e das nódoas, um casaco negro esburacado que já tinha perdido metade dos botões e o relógio Cortébert Speciale que o pai lhe oferecera anos antes.
Miguel manteve-se sentado ao longo da viagem, agarrado ao corrimão ferrugento, enquanto o frio se ia entranhando no destino incerto. Miguel estava excitado por ver o seu mundo ficar para trás, desejando somente que o passado não viesse atrás dele. O comboio só parou ao chegar à estação de Coimbra. Os primeiros raios de luz erguiam-se no horizonte, rompendo a bruma que cobria o espectro. Desconfiado das intenções dos militares, quando notou o comboio a abrandar a marcha, Miguel decidiu a saltar em andamento. Logo depois da ponte sobre o Rio Mondego, lançou-se desamparado para o chão e não conseguiu suster os pés, acabando por cair sobre a gravilha que se dispersava para fora da linha. Num ápice, levantou-se e começou a correr ao longo da linha, em direção ao rio, conforme a visibilidade lhe permitia. Entretanto, na estação ferroviária levantou-se um alvoroço, com os soldados a organizarem-se em filas pela cadência das ordens dos oficiais. Miguel continuava a correr, saltando sobre os barrotes de madeira. Acabou por alcançar o rio e seguiu depois pela sua margem rumo à cidade.
A cada passo, à medida que o dia clareava, Miguel parecia uma criança à espera de desembrulhar um presente. Porém, desconhecia as intenções de quem o embrulhara. Entrou na marginal e seguiu até à ponte de Santa Clara. Avistou então, na outra margem, um edifício numa tonalidade secular. Maravilhado pela magnificência do monumento, Miguel arriscou a travessia da ponte a fim de o ver mais de perto. Ainda que não percebesse nada de arte gótica, ficou muito agradado com torre sineira e com o pórtico. As casas à volta pareciam reconhecer-lhe a imponência e perfilavam-se em devoção, ao contrário das águas do rio, cuja selvajaria ameaçava a sua estabilidade.