Sombras de Silêncio #140

Entre o frio e a escuridão, os passos de Miguel tornaram-se incertos e inconsequentes. Quis por várias vezes voltar para trás, para o sossego de uma vida segura pelos píncaros da resignação. Porém, outra vontade impeliu-o a ignorar as égides de razões que se adensavam à sua volta. A noite suscitava burburinhos que lhe amedrontavam o espírito. Parecia que todas as criaturas menores deste mundo estavam à coca e à sua cata, com pequenos uivos e ainda piores silêncios, espreitando entre as brumas pela oportunidade de o atacar. Parou então, à espera de um som ou de alguma visão que lhe denunciasse os instintos. Imaginou-se às voltas com uma alcateia de lobos, com o olhar luzidio e os dentes afiados, salivando para lhe tirar a vida. Mas nada surgiu da escuridão. Fechou depois os olhos e deixou-se ficar, com os braços levantados e a cara enregelada. Deixou cair os braços, abriu os olhos e quis mentalizar-se que o melhor seria regressar e esquecer a liberdade.

Antes de Miguel dar o primeiro passo da desistência, escutou o barulho do comboio que se aproximava da estação. Estranhou a sua chegada de madrugada e vislumbrou as clareiras de luzes que surgiram na estação. Logo que o comboio parou, depois do último sopro de ar efervescente, a estação foi vencida pelas palavras de ordem dos militares. Pareciam correr de forma nervosa de um lado para o outro, como se fossem brisas perdidas à procura de um rumo. Bastaram apenas alguns minutos para que a locomotiva voltasse a soprar, nervosa e apressada, retomando de seguida a marcha da história.

Por instinto, Miguel sentiu uma atração pelo movimento libertário da máquina e começou a andar na sua direção, tropeçando nas frágeis canas de milho da leira. Saltou a pequena linha de pedras que separavam as propriedades e investiu no destino em passos cada vez mais largos. O comboio mantinha um andamento taciturno e tardou a aumentar a velocidade. Se tal não tivesse acontecido, Miguel não teria a coragem para se agarrar ao corrimão ou para saltar para a escadaria. Se tivesse pensado no que lhe poderia acontecer, Miguel não teria a vontade desenfreada de prosseguir. Se tivesse escutado os conselhos da mãe, por certo não estaria ali.

Sombras de Silêncio #140

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