Sombras de Silêncio #138

Arnaldo e Cina continuaram a discussão fora do quarto e pela noite dentro. Magoada, Cina quis confrontá-lo com a verdade escondida por detrás do nascimento do filho. Arnaldo, ainda que o desconhecesse, era estéril. Simão era filho de um encontro fugaz que ela tivera com outro rapaz, de vida ainda mais miserável do que a dela e sem interesse nem posses para cumprir o papel de pai. Tinha sido essa a razão que a tinha aproximado de Arnaldo, que nunca desconfiou da trama. Alguns meses antes, na viagem à Cova da Iria, Cina desprendeu-se por fim dessa culpa. Apesar da vontade; Cina sabia que não lhe poderia confessar a verdade, receando pelo futuro do filho.

Pela manhã, Arnaldo e Cina acordaram juntos. Passaram em fila pelo terraço e foram para a cozinha. Não repararam na corda esticada, que servia para dependurar os cabritos prontos para abate. Beberam o caldo que sobrara da noite anterior, apurado com uma pinga de vinho e entremeado com uma broa ressequida. Não trocaram palavras, apenas olhares. Arnaldo saiu depois, deixando Cina ocupada com a lide doméstica. Arnaldo desceu a escadaria com o olhar difuso e foi então que deparou com o cenário macabro, apanhando um susto que o fez recuar e cair sobre um monte de estrume: o corpo de Joana estava suspenso pela corda mortuária. Enforcara-se durante a noite.

Arnaldo deixou-se ficar sobre o estrume, impávido e estupidificado pelo incidente, enquanto era testado pela culpa. Gritou depois à esposa por ajuda. Cina chegou-se ao terraço e deu logo com a enforcada, largando um suspiro profundo. Cina teve a perspicácia para mandar o marido buscar ajuda, salientando que eles já a tinham encontrado daquela maneira. Vieram o padre, a Guarda e muitos da aldeia para a verem e oferecer as condolências à família. Cortaram a corda e levaram-na para o quarto. Sentados ao seu lado e em coro afinado, Arnaldo e Cina iam realçando as qualidades humanas e serviçais de Joana. Arnaldo reforçava ainda que ela tinha sido infeliz pela perda do marido na guerra, mas que ali reencontrara a alegria de viver. Lamentava apenas a ingratidão e o abandono do filho, que tinha conduzido à morte e à perdição da mãe.

Sombras de Silêncio #138

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