Sombras de Silêncio #137

Enquanto percorria as ruas da povoação, Simão notou um estranho alvoroço na estação de caminho-de-ferro e dirigiu-se de imediato para lá. Regressou a casa cerca de meia hora depois, numa altura em que Cina já tinha convencido Joana a irem beber um copo de água quente com açúcar, enquanto ela ia picando o coração com prelúdios de uma morte anunciada.

Simão trazia muitas dúvidas sobre o paradeiro do primo e apenas uma certeza: eclodira em Portugal uma nova revolução. Naquele momento, milhares de soldados estavam em trânsito com o objetivo de destituir a república parlamentar que governara o país após a queda a monarquia. Aos poucos, as cidades foram aderindo ao movimento e em breve impor-se-ia uma nova ordem nacional. Simão constatou-o pelos próprios olhos, garantindo que um comboio cheio de militares tinha partido recentemente para Coimbra. Ninguém vira Miguel na estação.

 – A revolução matou-me o filho! Salvou-se da primeira, mas desta foi de vez. Estava escrito! A guerra levou-me o marido, faltavam os soldados p’ra me levarem o filho. Fiquei sem nada… nem ninguém! – exclamou Joana, em prantos.

No próprio dia, Arnaldo, ainda que contrariado, informou a Guarda do Carregado do desaparecimento. Foram então diligenciadas várias ações de busca que se revelaram infrutíferas. Após quinze dias de incertezas, as lágrimas de Joana convenceram Simão a ir até Coimbra, onde passou um dia à procura do primo, admirando também a vida citadina, as raparigas desinibidas e os edifícios fabulosos que coloriam a encosta sobranceira ao rio Mondego. Voltou de bolsos vazios e sem esperanças que pudessem animar Joana, ou pelo menos atenuar a passagem dos seus dias por entre as dúvidas e as sombras moribundas.

Alguns dias depois, Arnaldo aproveitou a ida de Cina e do filho ao mercado da Azambuja para libertar mais um pouco de desejo. Joana, por todas as razões que lhe assistiam, recusou. Mas foi vergada pela força da razão de quem manda. Acabou esmurrada, violada e abandonada na sua cama. Entretanto, Arnaldo saiu de casa para os seus afazeres, garantindo-lhe que o trato seria ainda pior no caso de ela divulgar o que acontecera. Quando Cina e Simão chegaram a casa, pouco tempo depois, encontraram-na tal como Arnaldo a tinha deixado. Entre inúmeras perguntas e lamentações, Joana somente nomeou o cunhado e deixou-se consumir pela tristeza. Estava alheia a tudo, inclusive da teia de insinuações que a cunhada foi construindo. Cina cobriu-lhe o corpo desnudado com um lençol e mandou o filho chamar Arnaldo com a maior brevidade possível. Enquanto o casal ia esgrimindo acusações, Joana não lhes prestava qualquer atenção ou resposta. Estendida, sozinha, procurava no passado pelas encruzilhadas que a poderiam ter levado a outra vida. Questionou sucessivamente Deus e as más decisões, mas não obteve resposta.

Sombras de Silêncio #137

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