Sombras de Silêncio #129

Antes que a mãe respondesse à provocação, Miguel, de voz embargada, agradeceu e pediu permissão para ir para o quarto. Arnaldo consentiu e Miguel saiu finalmente da cozinha. Joana seguiu-o pouco tempo depois e os dois ficaram a amparar as mágoas, construindo sonhos e promessas para saírem dali.

Nos dias seguintes, Miguel tentou esquivar-se ao tio, mas impreterivelmente acabava por ser vítima da contiguidade das suas vidas. Joana engendrou então um esquema que contornava a teimosia do cunhado e preparava o pão ao filho todos os dias. De manhã, Miguel levantava-se mais cedo, passava de soslaio pela cozinha e levava o que a mãe lhe escondia durante a noite. Não arriscava comer lá. Ao meio-dia, Miguel tinha de esperar que Arnaldo terminasse e só depois ia aos restos permitidos. À noite, às escondidas do cunhado, Joana preparava-lhe um pão entremeado com queijo e marmelada. Parecia a Miguel que o jantar era um pedaço de céu. O doce da marmelada misturava-se com o sabor descorado do queijo, compondo-lhe o estômago e a alma.

Cina e Simão conversavam em privado sobre fado de Miguel. Joana ia carpindo as suas mágoas, receosa das brechas das paredes da casa e dos sonhos. Pensou em pedir ajuda para escrever uma carta aos pais, mas não encontrou alguém de confiança para tal. Com o tempo, Joana deixou que todos os bens que possuía fossem transferidos para a égide da família, a cargo do cunhado, incluindo os poucos escudos que lhe tinham sobrado. O sonho da liberdade esfumava-se entre os gadanhos da inoperância.

Se o tio lhe queria cortar os laços, Miguel também não se importava de se afastar. Vivia os dias pesados e soturnos, enterrado em trabalhos diversos que lhe fustigavam o corpo e apenas à noite encontrava algum consolo. Deixou de aparar e pentear o cabelo e não se preocupou mais em desfazer a barba dispersa. Porém, por altura do seu aniversário, o primo revelou-lhe que encontrara uma maneira de resolver todos os seus problemas, com a condição de se aprumar condignamente. Encomendou-lhe que se lavasse e barbeasse e pediu à mãe para lhe cortar o cabelo, sendo que ele lhe emprestaria o seu fato antigo de fazenda. O corpo franzino e a estatura distinta confluíram num resultado que feria as vistas às normas de etiqueta. As calças ficavam um pouco acima do tornozelo, baloiçando na cintura e só não caíam por graça dos suspensórios. O casaco quase lhe dava duas voltas à cintura, mas as mangas não lhe chegavam aos punhos. Arnaldo divertiu-se muito com a visão do sobrinho. Confuso, Miguel sorriu e foi encorajado pela mãe, que já sabia o que se passava.

Sombras de Silêncio #129

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