– Alto e para o baile! Já te veio a fome? ‘Tás muito enganadinho, meu menino! – interveio Arnaldo da cabeceira da mesa, encostado à parede negra, defronte para a lareira.
Joana sobressaltou-se, sem no entanto o demonstrar. Horas antes tinha conversado com Arnaldo e recebera a promessa que não seriam colocados entraves ou condicionantes ao regresso do filho às refeições familiares.
– Peço desculpa, meu tio – disse Miguel, num tom envergonhado, com as faces rosadas, cabisbaixo e a ferver de nervosismo.
– Ai agora já pedes desculpa? Vais ter de pedir muito mais! És um ingrato! Há cinco anos que andas aqui a comer à molagem e só agora é que te doeram os dentes? Ficaste chateado por teres o comer na mesa todos os dias da tua vida miserável? É isso que t’arrelia? Não sabes que a criação tem o destino traçado? Mas se é assim que queres, por mim tudo bem. Pronto, ‘tá decidido, nesta mesa não comes mais carne!
Arnaldo interrompeu o discurso ameaçador e olhou à sua volta com aspereza, vincando a sua vontade e enregelando as feições dos presentes. Ergueu depois o copo de vinho e bebeu-o por inteiro, deixando escorrer os excessos pelos queixos. Não foi por ordem do tio, mas sim por vontade própria, abnegada e sentida; Miguel, numa fome de orgulho, não voltaria a comer carne de ovelha, cabrito ou borrego. Arnaldo continuou depois a discorrer a sua autoridade, salientando que seria apenas por amor, divino e não familiar, que o manteria.
– Enfim, tenho pena de ti! Como diz o padre Dionísio: «ajudar os tolos e os pobres de espírito é abrir uma porta no céu». Mas daqui p’ra frente não abuses, que a minha paciência não é divina e até Deus perceberá isso.
Miguel anuiu com um sorriso inquieto. Joana, sem ousar rebater as alfinetadas do cunhado, passou-lhe a mão pelo cabelo nerval, confortando-o. Porém, desejava ter a força para forçar o cunhado a ajoelhar-se e pedir desculpa ao filho; queria obrigá-lo a ir comprar um rebanho de cordeiros só para ver um sorriso sentido e merecido no filho; queria que o marido ali estivesse para os defender; queria acordar com o aconchego dele e queria regressar a Lisboa e à vida que lá deixaram. Queria muito, mas bastava-lhe que o filho não tivesse de passar por aquilo.