Sombras de Silêncio #125

O fim de uma existência pode ser o princípio de outra. Pouco tempo depois do funeral, Simão viu finalmente alguma retribuição aos olhares que ia oferecendo à menina Clotilde, uma rapariga da sua idade, de cabelo negro e encaracolado, com a face redondinha. Ela era a mais nova na família e somente tinha uma irmã ainda por casar. Numa noite de lua cheia, Simão foi a casa dela pedir autorização para o namoro. Porém, o pai colocou um travão nas suas intenções. Esclareceu-o que tinha primeiro de fazer o casamento de Cristina, a irmã mais velha. Só depois é que Clotilde poderia namorar. Cristina tinha um rosto afável, mas sustinha um pescoço demasiado curto e as pernas eram enviesadas. Quaisquer que fossem as razões, nunca tivera pretendentes. Nessa noite, Simão voltou frustrado para casa.

Miguel esforçara-se para construir uma relação cordial com Arnaldo, que julgava ser um homem duro, à imagem do pai, porém justo. Por outro lado, o recente chefe da família há muito tempo que o tinha por sujeito de pouco juízo, mas muito útil no trabalho, em particular na lide com o boi durante a lavra e sementeira da terra. Para Arnaldo, o garoto trazia-lhe ainda à lembrança o irmão e algumas regalias que ele nunca usufruíra. Com a partida Manuel, Arnaldo ganhou finalmente a autoridade para mandar a seu gosto, sem estar preocupado com o que os outros pensavam. Miguel foi atropelado pelas mudanças anunciadas no final de outubro, quando o frio já se começava a sentir, mais de um ano após a morte do avô. Pelas seis da manhã começaram a ecoar bramidos angustiantes. Do quarto, Miguel ouviu o desespero e reconheceu de imediato que era a sua Estela. Acossado pelo frenesim, saltou do colchão e acordou a mãe, assustando-a. Correu até ao terraço e olhou para o pátio, ficando apavorado com a visão dramática. Arnaldo pendurara Estela por uma das patas traseiras e atara a corda a um pilar do terraço.

– Ó rapaz, volta p’ra cama que ainda te constipas – disse-lhe Arnaldo, afiando a faca contra uma pedra de xisto envolta em cortiça.

Desencantando coragem onde nem ele sabia que existia, Miguel correu para a cozinha e voltou com uma faca para cortar a corda. Assim que Arnaldo o viu a iniciar o corte ameaçou-o de pronto. Porém, Miguel manteve a determinação e nem um segundo aviso o demoveu do seu propósito, acabando por cortar a corda. Estela caiu desamparada no chão, levantou-se e tentou fugir. Colérico, Arnaldo travou-lhe a progressão e atou-a com uma corda a um pilar do pátio.

Sombras de Silêncio #125

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