Sombras de Silêncio #120

Em poucos dias, Manuel começou a sentir dificuldades de locomoção e por altura do Ano Novo já não se atreveu a cumprir a tradição. Todos os anos pegava na espingarda e dava dois tiros para o infinito. Doente, delegou o cumprimento da sua vontade no filho, que saiu de casa depois do jantar para a tasca da aldeia, mas regressou ainda a tempo de cumprir a promessa. Carregou a espingarda e foi para o terraço com vontade de dar um tiro no destino. Apontou para o céu enublado, puxou a culatra e apertou o gatilho, mas a bala não saiu. O estoiro rebentou com a culatra, levando-lhe o dedo polegar. As mulheres e os rapazes, que já estavam a dormitar, acudiram aos gritos de desespero. No seu quarto, Manuel gritava para que alguém lhe viesse explicar o frenesim. Enquanto Miguel o foi acalmar, Simão correu até à Azambuja rogar ao médico que atendera o avô para que viesse tratar do pai. Com alguma renitência, o médico acedeu ao pedido e veio fazer o curativo, travando a hemorragia e aconselhando o repouso durante alguns dias até a ferida cicatrizar.

Pareceu à família Fernandes que, face aos azares e atalhos do destino, precisariam de ajuda metafísica. Na manhã seguinte, Cina saiu de casa bem cedo e foi enterrar o dedo e a espingarda na quinta, amaldiçoando os homens e as armas. Quando voltou já estavam quase todos à sua espera para irem falar com uma vidente. Madame Bexiga vivia a alguns três quilómetros, numa casa em ruínas junto ao Tejo, a montante de Vila Nova da Rainha. Escolhera o nome juntando o tom sublime do estrangeirismo com o órgão onde insistia em praticar algumas das suas vidências. Possuía um pequeno quintal onde plantava o mínimo para subsistir e dedicava-se a revelar o que as pessoas queriam acreditar. Quando lá chegaram, a vidente estava a cortar a goela a uma galinha que alguém lá deixara no dia anterior como pagamento. Era uma senhora de baixa estatura e um pouco gordinha, vestida de negro e com rosto vincado de rugas suspeitas.

Sombras de Silêncio #120

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