Sombras de Silêncio #116

Depois da perda e da consciencialização da nova realidade, Joana e Miguel tentaram habituar-se à vida na quinta. Manuel ficou muito surpreendido pelo facto de o neto ainda não saber ler nem escrever sem ajuda. Joana desculpou-se com a mobilização do professor do quartel para a guerra e não quis adiantar mais pormenores. Manuel intercedeu em seu favor, consolando o neto com uma palmada nas costas. Adiantou que também ele não sabia ler, mas que isso não tinha sido impeditivo para vencer na vida. Reiterou-lhe por diversas vezes que mais valia não saber ler do que não saber trabalhar. Miguel, que nunca gostara da escola, ficou encantado com a opinião do avô. Continuava todos os dias a dar corda ao relógio que o pai lhe dera, conservando orgulhosamente na memória a cantiga ensinada. Por vezes, quando a saudade apertava mais, fechava os olhos em esperança e rodava a corda em sentido contrário para inverter o tempo. Nunca teve sucesso.

Cina, apesar de lhe pesar a morte do cunhado, ficou agradada com a vinda de mais uma mulher, com quem poderia dividir as tarefas domésticas. Aos poucos, as duas tornaram-se confidentes. Cina não tinha mais alguém para partilhar as arrelias que Arnaldo lhe causava. Cina encarava com curiosidade as diferenças na realização das lides, como por exemplo a insistência da cunhada em tirar os vincos da roupa através de uma talocha de ferro que aquecia ao lume. Invejava-lhe também a estadia em Lisboa, imaginando-se a passear nas largas avenidas. Ajudou-a ainda a ultrapassar as dificuldades da perda do marido, promovendo inclusive algumas comparações relacionais.

A passagem do tempo aligeirou a mágoa de Joana e de Miguel. Esforçados em retribuir a generosidade do anfitrião, empenharam-se nas lides do campo e da casa. Com um sorriso de melancolia, deslizaram pelas estações e começaram a olhar mais para o futuro do que para o passado. Quando as árvores floriam, plantavam batatas, feijões, trigo e milho; colhiam antes da chegada do calor e faziam depois a vindima; quando as folhas começavam a cair das árvores arrumavam o feno e a palha debaixo de telha; pelo Natal apanhavam a azeitona, podavam as videiras e no início do ano começavam a preparar os terrenos para mais uma fadiga de trabalhos.

Sombras de Silêncio #116

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