Sombras de Silêncio #112

Joana, alheada num passado esquecido, pegou-lhe e entregou-a ao filho. Miguel, de olhos lacrimosos e em silêncio, devolveu o envelope ao militar, que entendeu a situação e passou a ler a curta declaração. Era de Manuel, pai de Carlos. Ao saber da situação, Manuel pretendia, conforme era vontade do próprio Carlos, que Joana e Miguel descessem o Tejo e fossem morar na quinta em Vila Nova da Rainha. Carlos escrevera meses antes ao pai, pedindo-lhe para olhar pela nora e pelo neto caso a guerra o levasse. Joana, ainda em convalescença pela certeza da morte anunciada, entrou numa negação sistematizada. O oficial confirmou-lhe depois que a casa onde tinham vivido até então iria ser resgatada pelo quartel. Entre a espada e a parede, sem poder ali continuar e sem vontade de voltar ao mar e aos mercados do peixe, sentiu-se impotente para contrariar a realidade. O oficial disse por fim que o país estava muito agradecido pelos serviços extraordinários do egrégio sargento. Contudo, de forma subtil, alertou para a necessidade de a mudança ocorrer na maior brevidade possível. Joana poderia ainda receber um valor pecuniário pela perda.

Joana e Miguel ficaram numa consternação desmedida, deixados à sorte de um destino errante. Rendida às evidências, Joana tratou depois de organizar e empacotar todos os pertences, enchendo ainda algumas sacas de serapilheira com a totalidade das colheitas do último ano, decidida em não deixar qualquer grão para o quartel, já que lhe era devido um marido. Na manhã do dia 10 levaram os pertences até ao apeadeiro, com o propósito de abandonarem Tancos no comboio do meio-dia. Foram depois comprar os bilhetes para a viagem até Vila Nova da Rainha, mas foram surpreendidos ao verem um homem novo na bilheteira. Joana perguntou-lhe então o que acontecera a António.

– Não sabe?! Foi uma desgraça que o levou. O funeral é logo à tarde. Dizem que foi de uma gripe que apanhou em Lisboa. Depois da guerra, já só nos faltava isto. Já viu?! Uma gripe! Quem diria que tal era possível. Mas os médicos dizem que é mesmo assim. Diz-se até que já morreram mais pessoas da gripe do que da guerra – respondeu o moço, de ar franzino e bigode esgrouviado.

Sombras de Silêncio #112

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