Sombras de Silêncio #1

A luz tépida da vela acesa por cima da mesa preenchia humildemente a cozinha improvisada, deixando que algumas sombras deambulassem em silêncio pelos cantos. A larga chaminé, revestida por tijolo encarnado, dominava e tentava aquecer o ambiente, opondo-se a uma brisa gelada que entrava pelas brechas do tempo inquieto. Sobre uma espessa mesa de pinho repousava um relógio de bolso Cortébert Speciale, ditando a cadência do marasmo na vida do pastor Miguel Girolme, que preparava o seu habitual jantar de pão entremeado com queijo e marmelada. Entregue a uma vida remediada pelo bucolismo, vergado pelas vicissitudes da idade e atemorizado pelas brumas misteriosas, Miguel desconhecia o sossego maquinal que estava prestes a mudar-lhe a existência e a terminar com a minha longa espera.

Já me perdi do tempo que passou desde que aqui cheguei. Não me arrisco sequer a fazer uma estimativa e temo que seria apenas incompreendido. Desde então, sabia que alguém haveria de chegar um dia para me possibilitar o regresso a casa. Embora esteja impaciente por reencontrá-lo em mim, ainda não é oportuno relatar essa confluência de vontade e saudade. Irei primeiro falar-vos de Miguel Girolme e de tudo o que se seguiu ao momento em que o seu relógio de bolso desistiu de contar os instantes da sua vida.

Miguel não nasceu Girolme, mas sim Fernandes. A alcunha foi-lhe emprestada depois de ter andado fugido ao regime fascista, a uma fronteira da memória. Num corpo de baixa estatura e já curvado pelos setenta e oito anos de idade, tinha o cabelo esbranquiçado e tendencialmente anarquista; o nariz pendia-lhe desistente sobre os lábios; os olhos, delineados por fartas sobrancelhas, refletiam a cor do feno que distribuía diariamente pelo rebanho; de barba dissidente, a cara era recomposta por um bigode mal aconchegado e algumas rugas de violência; nas mãos, os ossos lutavam contra a artrite e as unhas estavam enegrecidas. De roupa gasta e vida remendada, Miguel baloiçava os pés numas botas impregnadas de vivências, mas cujo destino parecia exceder o seu propósito.

Sombras de Silêncio #1

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