Grande Trail Serra d’Arga

Mais de três anos depois regressei a uma prova de ultra trail. A escolha incidiu sobre o Grande Trail Serra d’Arga, versão 45 km, uma das mais emblemáticas e concorridas do circuito nacional. Como incentivo adicional, para além de uma visita ao secular mosteiro São João d’Arga, pouco mais conhecia desta serra. Com um contexto de preparação mais exíguo do que noutros tempos, com menos tempo e com pouco desnível positivo, sabia das dificuldades que se ergueriam pela frente, mas o corpo já está habituado aos misteriosos desvarios da mente.

Na chegada a Dem toda a aldeia parecia imbuída pelo espírito do trail. Com a burocracia tratada desde o dia anterior, fui até ao ponto de partida e esperei num frenesim crescente pelas oito badaladas do sino da igreja para iniciar a aventura. Saindo da aldeia, rapidamente o trilho encontrou a primeira grande subida do dia. Apesar de a fila indiana atrapalhar um pouco nas partes mais técnicas, o ritmo estava bom. Vencida a primeira dificuldade, ao chegar ao planalto voltei a correr e iniciei a descida para o mosteiro, de onde prossegui até ao primeiro abastecimento, em Arte na Leira.

Continuando pelos arrabaldes da serra, ligeiro nas pernas e com as vistas descomprometidas pelo horizonte, enfrentei a segunda dificuldade do dia, com a descida para Cerquido. De salto em salto e de impacto em impacto, varri num bom ritmo as pedras lajeadas feitas em trilho. Passando pelo segundo abastecimento, a descida terminou depois no ponto de acesso ao grande desafio do dia: a ascensão para a Senhora do Minho, uma subida linear e ininterrupta de cerca de 600 metros em altimetria. Para além de uma dor no joelho, apareceram também as dores lombares e as cãibras, temperadas com as perguntas que são habituais nestas circunstâncias sobre as escolhas de vida que me tinham levado até ali. Por lapso, tinha deixado ligado o modo de corrida do relógio que detetava automaticamente as paragens, pelo que passei a subida a ser gozado pelo aparelho por ir tão lentamente que parecia parado.

A chegada à Senhora do Minho revelou um planalto aconchegante, onde aproveitei para recuperar das maleitas do corpo. Na descida para a aldeia de Montaria mantive o ritmo calmo e com um novo abastecimento senti de passagem uma brisa de rejuvenescimento. Após uma descida rápida entrei no fantástico troço do rio Âncora. Seguindo a montante por um trilho que serpenteava junto ao rio, fiquei encantado com o percurso. Certamente regressarei para uma exploração mais delongada. Não fosse por mais, apenas pela descoberta deste percurso já teria valido a pena.

Após um périplo por mais uma encosta, desci para a aldeia de Pedrulhos, local da última paragem. Com o estômago reconfortado e abastecido da vontade de vencer os últimos quilómetros, investi em mais uma subida ao planalto, com posterior descida pelo percurso da ascensão inicial para Dem. Valeram-me os bastões para amortecer os impactos nos joelhos. Visto de longe, deveria parecer um velhinho de muletas a tentar fugir do homem da marreta.

Depois, num passo de magia, as dores e o cansaço acumulado foram desaparecendo na esperança que a meta estava ao virar da esquina e terminei em corrida. Para trás tinham ficado 45km, com 2600m de subida/descida acumulada em cerca de 9 horas de prova. Antevia demorar menos tempo, mas a dureza do percurso acabou por voltar-se contra as vicissitudes da preparação. Não tinha ambições para treinar mais, mas poderia ter treinado melhor. Ainda assim, já em casa, voltei a ter a estranha sensação de estar demasiado cansado para conseguir dormir; valeu um banho de água fria para agilizar a recuperação. Tanto pela dificuldade como pela distância, não chegou a ser uma experiência limite como na Freita ou na Estrela, mas deixou a certeza gravada no corpo que tinha conseguido superar-me.

Está feito o Grande Trail Serra d’Arga. Um bom desafio, numa mistura equilibrada de dificuldade e tecnicidade, com uma subida marcante à Senhora da do Minho e um percurso pelo rio Âncora do melhor que pode haver no trail. Agradeço à organização e colaboradores pela fantástica experiência. Pareceu-me tudo tratado e cuidado ao pormenor, desde a comunicação, as marcações do trilho e os abastecimentos. Palavra final para o incrível espírito do trail que ali encontrei. Já tinha saudades da próxima, talvez na serra Amarela.

Grande Trail Serra d’Arga

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