Feidípedes, eu e a Maratona do Gerês

No final

Primeiro, Feidípedes! Conta a história… reza a lenda que Feidípedes foi um atleta e mensageiro do exército grego. Em 490 AC, durante a primeira guerra médica, com os persas decididos a tomarem todas as cidades-estado da Grécia, Feidípedes terá corrido de uma cidade para outra para levar informação e união entre os gregos. A batalha decorreu na cidade de Maratona, que fica a cerca de 42 quilómetros de Atenas. Com a vitória grega, depois de todo o esforço despendido antes e durante a batalha, Feidípedes correu essa distância de volta a Atenas para revelar o desfecho. Exaurido, anunciou “Vencemos” e caiu morto. Nos primeiros Jogos Olímpicos da modernidade, em 1896, pretendeu-se homenagear a memória de Feidípedes e assim (re)nasceu a prova de(a) Maratona, tendo como referência a distância entre as duas cidades.

Segundo, eu! Acho que no meu subconsciente sempre quis correr a maratona. Para quem gosta de desporto, é difícil ficar-se indiferente a este legado de superação. A maratona tornou-se, provavelmente, na prova rainha do desporto mundial e não é por acaso que encerra cada evento dos Jogos Olímpicos.

Terceiro, a Maratona do Gerês!

Sopa da pedraHá cerca de um mês atrás, ao ficar a conhecer a existência desta prova, decidi que a teria de experimentar. Contudo, entre a vontade e a concretização existe a preparação. Comecei por correr em plano e, tendo em conta as características da prova, fui experimentando o terreno inclinado, subindo e descendo sucessivamente o monte da Senhora do Castelo, em Vouzela. No final, estava a fazer cerca de 24 quilómetros. Sabia que era insuficiente e também por isso, no dia anterior à corrida, senti que apenas poderia fazer uma coisa: uma sopa da pedra! A ideia ficara desde uma refeição memorável, aquando de uma caminhada com amigos pela Serra da Freita. Confesso que ficou muito boa. A Ana Valente até repetiu!

A Maratona do Gerês, realizada em 30 de novembro de 2014, estava anunciada como a “world’s toughest road marathon”. Tal é naturalmente subjetivo e relativo. Basta haver quem queira e não existe limite para a dificuldade. Ainda, pelo que sei, existem regras para que uma prova possa ser considerada uma maratona, em particular no que diz respeito à altimetria (terreno quase plano, do início ao fim). De qualquer forma, pensando historicamente, a prova atual que mais se aproxima das características da corrida realizada por Feidípedes é mesmo o trail. Assim, ao acrescentar como dificuldade a altimetria, a Maratona do Gerês pode sem dúvida, ainda que não oficialmente, ter-se como uma descendente digna do legado de Feidípedes. E também foi esse acréscimo de dificuldade que me cativou, para além de a prova realizar-se fantástico mundo do Gerês, onde é sempre um prazer regressar.

Como tinha de me levantar muito cedo para fazer a viagem no próprio dia, levantar o dorsal e preparar-me para a corrida, acabei por não dormir nada. Ansioso e expectante, saí de casa eram cerca de 5 horas da manhã. Durante a viagem acabei por me demorar no Porto e em Braga, ao perder-me do rumo certo. As coisas não estavam a correr bem. Lá consegui recuperar e cheguei à vila do Gerês um pouco antes das 8 horas. Fui levantar o dorsal e encontrei o amigo Nélson Amaral com um colega e aproveitámos para tomar um café. Ainda bem que os encontrei, também porque me revelaram a existência do chip (que haveria de servir para marcar e comprovar a passagem pelos pontos de controlo) e onde o deveria colocar. De outra forma acho que acabaria por deixar o chip, juntamente com os outros itens de oferta da organização, no carro. Antes do tiro de partida, foi feita uma pequena homenagem a João Marinho, o aventureiro desaparecido nos Picos de Europa. Não conheço a pessoa mas simpatizo com o seu espírito e conheço o local, sendo que é naturalmente uma situação terrível, em particular para a família. Gostei da homenagem!

Após a partida, as primeiras centenas de metros serviram para perceber as dificuldades. É certo que já conhecia todo o percurso, por onde passei várias vezes… de carro, mas sentir o peso da experiência nas pernas é diferente. Sabia que a primeira parte, sempre a subir até ao miradouro da Pedra Bela, haveria de ser importante para o resto da prova. Não poderia desgastar-me em demasia ou certamente haveria de ter problemas. Acabei por subir bem mas foi na descida que surgiram os problemas. Não sei foi da sopa da pedra ou se foi de uma mistura de coisas, a verdade é que comecei a ficar bastante indisposto, com uma forte dor de barriga. Não foi nada fácil, mas com uma paragem estratégica lá consegui recuperar. Depois da descida, seguiu-se mais uma longa subida até à Portela de Leonte, um dos locais que me serve habitualmente de partida para as caminhadas pela Serra do Gerês, por onde gosto de me perder. A Mata de Albergaria está particularmente bonita nesta fase do ano. Tive imensa pena de não ter a minha máquina fotográfica à mão; o cenário outonal era inefável e correr ali é mais do que um gosto, é um privilégio!

MedalhaApós mais um abastecimento, dei a volta à Mata e fui acompanhando a albufeira de Vilarinho das Furnas. Por esta altura, já tinha percorrido mais de metade da distância e o cansaço e as dores começavam a fazer-se notar, em particular na perna esquerda. As subidas já eram encaradas não como um desafio mas como uma oportunidade para descansar, caminhando em ritmo acelerado. Foi algures por aqui que algo de inesperado aconteceu: levei com uma pinha na cabeça! Admiro agora a paciência e a pontaria do pinheiro mas na altura não gostei nada da casualidade.

Depois de uma paragem reconfortante no Museu da Geira, iniciei a última subida. Ao longe, lá em cima, a Calcedónia trazia-me à memória aventuras de outros tempos. Fui então novamente surpreendido, desta vez quando um senhor, que eu pensava ter mais de sessenta anos, me passou. Durante a corrida, entre vários estados de sofrimento, vou conversando com alguns personagens. Ironicamente, acho que é a minha forma de manter a sanidade. À passagem do senhor, tive então este diálogo:

– Tu vais deixar que ele me faça isso? – perguntou o Ego.

– Olha, corre tu atrás dele, que eu não posso! – ripostei.

Ainda assim, tentei. Mas não consegui. As pernas ameaçavam desfalecer a qualquer momento. Ao chegar ao cimo da subida, no último ponto de abastecimento, em conversa com um dos colaboradores da prova, falei-lhe no senhor.

– Sessenta e tal? Diga antes setenta e tal. O homem é uma máquina!

Ainda fiquei mais impressionado, enquanto o Ego troçava de mim de soslaio. Depois, à minha frente estendia-se a descida até à vila e ao final da prova. Contudo, com o cansaço acumulado, mais parecia que tinha uma parede para ultrapassar. Continuei a correr e a dado momento fui apanhado por um colega, mais experiente nestas andanças, e foi de muito bom grado que apanhei “boleia”. Durante a conversação íamos esquecendo as dores, confortados pela paisagem geresiana, em particular com as vistas sobre a albufeira da Caniçada. Da conversa retive o seguinte: “Na maratona, corre-se 21 quilómetros com as pernas, 15 com a cabeça e o resto com o coração!” E realmente faz sentido. Pensei então na outra prova em que me estreei este ano, o Ultra Trail Serra da Freita (UTSF). Dadas as enormes dificuldades desta prova, sabia que era preciso um milagre para terminar. Quando, a partir do quilómetro 55, comecei a perceber que o iria conseguir, cresceu em mim uma força inexplicável e a parte motivacional foi fundamental para ultrapassar as dores e superar-me. Aqui, na maratona, foi diferente: eu sabia que, exceto pela infelicidade de uma lesão, iria terminar. Assim, sem aquele acrescento motivacional, foi padecer até ao final. Contudo, ao cruzar a meta, todo o sofrimento se transformou em alegria e felicidade por ter suplantado mais um desafio e uma vontade antiga, na certeza que dei o máximo de mim e que muito dificilmente poderia fazer melhor com a parca preparação.

Em relação ao que menos importa nesta aventura, os números: fiquei na posição 157, com um tempo de prova de 5:24:33. Cerca de uma hora a menos do único objetivo a que me tinha proposto. Resta apenas agradecer à organização e colaboradores da prova, que estiveram fantásticos no apoio aos participantes, assim como a todos os atletas, pelo incrível espírito de partilha, de amizade, de ajuda e de motivação!

Este ano, depois de me ter estreado no trail, no UTSF, esta foi a melhor maneira de me estrear numa maratona, e logo à séria, no mundo encantado do Gerês. Não sei se voltarei a participar noutra, mas é certo que fiz mais um risco na lista “Coisas a fazer”!

Albufeira da Caniçada


Feidípedes, eu e a Maratona do Gerês

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