A descoberta recente que a serra da Arada também se tinha convertido à moda dos baloiços relembrou e espicaçou a vontade de subir a encosta desde a aldeia de Gourim. Juntando a necessidade espiritual de ir todos os anos à Drave em modo de corrida de montanha, bastou que surgisse a oportunidade para me fazer ao caminho de mais uma edição em solitário do DraveTrail.
Cheguei a Póvoa das Leiras a meio de uma manhã soalheira. Investi pelo trilho Inca e cruzei a penedia ajeitada na encosta ingrime, moldada por mãos hábeis ao longo dos séculos. Chegado ao outro lado, a habitual matiz púrpura primaveril espalhava-se pelas encostas das montanhas envolventes, numa paisagem elegante e fotogénica. Desci depois em corrida a encosta da Garra na direção do rio Paivô. Pelo meio confirmei a extrema unção ao último dos três pinheiros, que depois da morte de pé já está a ser comido pela terra.
O plano inicial passava por fazer a subida pelo leito do rio até à Drave. Existem muitas formas de chegar à aldeia mágica, mas esta é indubitavelmente a melhor. Porém, ao chegar ao rio, verifiquei que o caudal ainda estava demasiado alto, o que iria dificultar e atrasar bastante a investida. Segui um pouco a montante sem molhar os pés, mas junto à antiga ponte optei por subir a encosta pelo trilho em direção a Regoufe.
Um pouco mais acima revirei a vontade e prossegui para a abandonada aldeia do Pêgo. Como é habitual, não vi alguém por lá e continuei pelo trilho, subindo a encosta em direção ao percurso oficial que vem de Regoufe. Pese embora o isolamento, agradeci mais uma vez que a abertura do caminho tenha sido travada e que o trilho ancestral se tenha mantido. Drave surgiu então no horizonte, mágica como sempre. Aproximei-me dela numa correria desenfreada, mas optei por descer à ribeira e prossegui por lá, numa tentativa de recuperar parte do plano inicial. Reencontrei então as águas límpidas e coloridas das fantásticas lagoas a jusante da aldeia, ideais para um banho ao estio.
Chegado à Drave, cirandei perdido do tempo. Para quem nunca a visitou pode ser difícil perceber o encanto, mas é mesmo assim. Existe por lá uma mística irresistível de silêncio e contemplação que a tornam especial. É, verdadeiramente, uma montanha do tamanho do homem. Apesar de abandonada, a aldeia nunca está sozinha. Pensei que esta seria a vez que a visitaria sem encontrar alguém, mas ainda não foi desta.
Cruzando a ponte, subi depois a montante pela ribeira de Palhais. A meio descobri uma casa reconstruída junto à ribeira, que parecia privada e terá sido recuperada recentemente. Um ótimo refúgio nos dias a haver, entre a solidão consentida da montanha. Fiz um pequeno desvio à construção escutista e reli o poema gravado na madeira das pessoas que por ali passaram e deixaram um pouco de si.
“Partimos com vontade de um dia aqui voltar. Ser caminheiro nos rumos do homem novo. Amar é a partida. Quem não vive para servir, não serve para viver. Drave, a aldeia do quase nada que tem quase tudo. Corre, salta, dança, voa, vem dançar sobre o luar, ama, agradece num sorriso quem te olha a chorar. Tu tens de dar um pouco mais do que tens. O que levas na mochila tu, agora que chegaste ao fim do teu caminhar? Vive, partilha e avança. Tu tornas-te eternamente responsável por aquilo que cativas. O caminheirismo é a fraternidade do ar livre e do serviço. O caminho é individual mas nunca solitário. Ser caminheiro é estar preparado para o pior, esperar o melhor e aceitar o que vier. Drave é o nosso pedacinho de céu. A felicidade só é real quando partilhada. Levo a mochila cheia tenho tudo para dar, levo a luz do teu olhar…”
Prossegui até uma nova paragem para almoço junto à ribeira, onde aproveitei também para abastecer de água. Como é habitual, gosto de ir leve para estas aventuras e pelo conhecimento do terreno avalio onde posso desenrascar as necessidades. Serpentei depois pela exigente subida da encosta da margem esquerda. À medida que ia ganhando altitude ficava mais completa a visão do grande vale pintalgado com as cores primaveris. Lá em cima, continuei pelos caminhos em corrida e iniciei a descida para Gourim. O facto desta aldeia ser acessível de carro (de preferência TT) fez com que escapasse ao abandono total, tendo havido recuperações para fins de habitação e turismo. Porém, a reconstrução ficou-se pela entrada da aldeia. O restante foi deixado à sorte do tempo e da natureza, que aos poucos está a recuperar as ruínas para si.
Atravessando o arvoredo resistente, cruzei o rio Paivô junto ao antigo moinho e iniciei a longa subida em direção ao baloiço na estrada que atravessa a Arada. Apesar de possuir uma ascensão inicial ingrime, o trilho vai-se tornando mais acessível e é notoriamente menos penoso que a subida da Garra. Chegando à estrada, prossegui em direção ao final da aventura. De vistas largas, mas com o alcatrão a queimar as sapatilhas, o caminho acabou por perder um pouco o interesse. Porém, reencontrei-o logo depois do caminho das eólicas ao reentrar no percurso que desce a Garra e posteriormente no fantástico trilho Inca, onde me despedi da aventura.
Todos os regressos à Drave e à Arada são bons, qualquer que seja o contexto. E em cada visita encontro sempre mais motivos para regressar à minha geografia sentimental.
O percurso, com cerca de 23 km, pode ser visto/descarregado aqui.