Democracia de rosto humano

Democracia de rosto humano

No passado domingo decorreram as eleições presidenciais e o povo, com maior ou menor indiferença, lá foi acertar com uma cruz no futuro incerto. Desde a Revolução de 25 de Abril de 1974, os eleitores vão passando pelas eleições como os reis magos pelo presépio: apenas no Natal é que nos lembramos deles. Esta indiferença pode estar relacionada com um comodismo insuspeito ou com uma certa sensação de insignificância individual do voto. É certo que um voto pode não fazer a diferença, mas de cada vez que nos desinteressarmos das eleições estaremos a desrespeitar a memória daqueles que, ao longo de séculos, lutaram para que vivêssemos em democracia.

Esta eleição presidencial, para além efetivar o fator “mediatismo”, ficará para a história como uma das que teve menos estória. Curiosamente, passou apenas um dia, alguma coisa terá mudado e já o presidente eleito, Marcelo Rebelo de Sousa, estava alegadamente a conduzir sem cinto de segurança e a estacionar num local reservado a veículos com dístico de deficiente. Para além do episódio caricato, a sensação de poder e influência será mesmo uma das idiossincrasias humanas mais marcantes.

Existem conceitos distintos de democracia e existem diferentes formas, mais ou menos camufladas, de protelar o poder, geração após geração. Deixando a inocência de lado, é evidente que um político estará sujeito a diferentes formas de pressão; no limite, a sua ação pode ser apenas a vontade de uma sombra sem nome. E nem sequer é preciso ir para a política para vivermos isso. Todos temos um armário, de tamanho variável, para escondermos ações ou influências que nos envergonham.

Existem distintos conceitos de democracia e um dos mais relevantes, quer sejamos políticos ou apolíticos, é a “democracia de rosto humano”. O conceito foi eternizado por Miguel Torga num dos seus diários:

“Gerês, 6 de Agosto de 1968 — Derradeira visita à aldeia de Vilarinho da Furna, em vésperas de ser alagada, como tantas da região. (…) E assim, progressivamente, foram riscados do mapa alguns dos últimos núcleos comunitários do país. Conhecê-los, era rememorar todo um caminho penoso de esforço gregário do bicho antropóide, desde que ergueu as mãos do chão e chegou a pessoa, os instintos agressivos transformados paulatinamente em boas maneiras de trato e colaboração. (…) Mas eu ainda sou pela ordem voluntária no ócio e no trabalho, por uma disciplina cívica consentida e prestante, a que os heréticos chamam democracia de rosto humano. De maneira que gostava de ir de vez em quando até Vilarinho presenciar a harmonia social em pleno funcionamento, sem polícias fardados ou à paisana. Dava-me contentamento ver a lei moral a pulsar quente e consciente nos corações, e a entreajuda espontânea a produzir os seus frutos. Regressava de lá com um pouco mais de esperança nos outros e em mim.”

Miguel Torga, Diário XI

Os habitantes da antiga aldeia, para além de um senso de comunidade ímpar, construíram um sistema social ao longo de séculos assente no respeito e no cumprimento voluntário das leis e preceitos de Vilarinho. Naturalmente, os assuntos de interesse eram discutidos, por vezes de forma acalorada. Mas logo que o Juiz decidisse ninguém se iria opor. Existia uma lei moral acima de qualquer interesse pessoal e uma consciência cívica sobre o bem-comum. Numa reportagem realizada durante o último ano antes de a aldeia ser submersa pelas águas do rio Homem, um habitante afirmou em entrevista: “A consciência é maior que esta serra toda; é maior que o mundo inteiro!”

Políticos ou apolíticos, faz-nos falta esta consciência em fazer o bem sem estarmos à espera de sermos beneficiados de alguma forma; faz-nos falta agirmos de forma correta independentemente do que possa acontecer; faz-nos falta uma espinha dorsal de valores que nos endireite a vida; faz-nos falta a disposição natural para, mesmo estando sozinhos, decidirmos ou agirmos como se estivéssemos a ser constantemente observados; faz-nos falta que vivamos uma democracia de rosto humano; faz-nos falta esta consciência moral que se afogou um pouco em Vilarinho. Também por isso, vale sempre a pena visitar as suas ruínas; regressaremos de lá sempre com uma certa memória de esperança no Homem e no mundo.

Vilarinho


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