«Quando nisto iam, descobriram trinta ou quarenta moinhos de vento, que há naquele campo. Assim que D. Quixote os viu, disse para o escudeiro:
— A aventura vai encaminhando os nossos negócios melhor do que o soubemos desejar; porque, vês ali, amigo Sancho Pança, onde se descobrem trinta ou mais desaforados gigantes, com quem penso fazer batalha, e tirar-lhes a todos as vidas, e com cujos despojos começaremos a enriquecer; que esta é boa guerra, e bom serviço faz a Deus quem tira tão má raça da face da terra.»
In D. Quixote de la Mancha, Miguel de Cervantes
Como «nenhum homem é uma ilha», resolvi criar o espaço “As minhas leituras” para divagar um pouco sobre a literatura que me inspira. Não tenho pretensões de o fazer como um entendido sobre o assunto, mas sim como um leitor entusiasta. A escolha do primeiro livro a abordar é natural e imediata. Afinal, é meu livro preferido. Não é por acaso que D. Quixote de la Mancha é considerado como o primeiro romance da literatura moderna; não é por acaso que o livro sobre o “Cavaleiro da Triste Figura” aparece no lugar cimeiro de incontáveis concursos sobre preferências literárias e não é por acaso que inúmeras personalidades de áreas tão diversas tenham aprendido castelhano com o intuito primordial de ler o livro na língua original.
Gosto de pensar que a literatura é um diamante, talhado e aperfeiçoado pela humanidade ao longo de muitas estórias. Obviamente, tamanha beleza não pode ser apresentada sem um apoio a condizer. Imagino um suporte dourado com várias pernas, sobre o qual repousa uma almofada escura que sustenta o diamante. De acordo com as preferências de cada um, podemos considerar que a literatura é suportada por um número distinto de pernas, que podem representar culturas, autores e livros. Quase tudo é discutível, exceto a relevância da obra de Miguel de Cervantes. Em qualquer universo, D. Quixote de la Mancha é um dos suportes inquestionáveis da literatura.
A história de D. Quixote de la Mancha é sobejamente conhecida, mas vale sempre a pena recordá-la. Num lugar esquecido da Mancha vivia um fidalgo que, após anos a fio a ler livros de cavalaria, ambicionou tornar-se num cavaleiro andante. Decidiu então, depois de se ter armado cavaleiro numa taberna local e recrutar o fiel escudeiro Sancho Pança, partir em busca de aventuras. Com a imaginação em riste, lutou pelos inocentes, derrotou gigantes (ainda que para alguns parecessem moinhos), venceu criaturas temíveis, viajou por reinos distantes e enigmáticos, salvou princesas e desbaratou a maldade do mundo. D. Quixote amava e dedicava-se de coração à sua princesa Dulcineia, a quem se encomendava antes de qualquer aventura e que vivia num estado encantado da sua imaginação.
Para além da estória genial e dos inúmeros episódios memoráveis, um dos aspetos mais marcantes do livro é a qualidade da escrita. As palavras surgem de uma forma tão natural e elegante que o livro parece estar envolvido por uma fluência mística e inspiradora. Para lá de qualquer evolução da língua, ao arrepio de qualquer acordo linguístico, D. Quixote de la Mancha será por muitos séculos o exemplo tangível da arte de bem escrever. O livro foi publicado em 1605, mas cada nova geração redescobre nele a atualidade e a vida.
Um outro aspeto marcante da estória é o seu final. Durante 125 capítulos, o leitor apaixona-se pelo personagem e vagueia ao sabor da imaginação e da aventura. Sem querer revelar demasiado e para não retirar o prazer da descoberta a quem ainda não leu D. Quixote de la Mancha (?!), acrescente-se apenas é que dilacerante o toque com a realidade. O que custa não é despedirmo-nos de D. Quixote, mas sim sentirmos o peso da realidade a vergar o sonho. Talvez seja a metáfora perfeita da vida; apenas morremos quando deixamos de sonhar.
Fica para a história da literatura a perfeita comunhão entre D. Quixote e Sancho Pança, marcada por vários momentos de fantasia e lucidez: «E se, assim como, estando eu louco, fui parte que se lhe desse o governo de uma ilha, pudesse agora, que estou em meu juízo, dar-lhe o de um reino, dar-lho-ia, porque a singeleza da sua condição e a fidelidade do seu trato assim o merecem». O livro encerra também com uma das formas mais emblemáticas com que um autor se despediu do seu personagem: «Só para mim nasceu D. Quixote, e eu para ele; ele para praticar as ações, e eu para as escrever. Somos um só».
Ao longo dos séculos, D. Quixote de la Mancha tem inspirado gerações de artistas nas mais diversas áreas, particularmente na literatura. É inimaginável tentar quantificar esta inspiração ou considerar a hipótese de o livro não ter existido. Nem valerá a pena pensar nisso. Naturalmente, D. Quixote de la Mancha é também para mim uma inspiração, tanto por aquilo que escrevo, como na simples partilha de um lugar, n’ A quietude do tempo contra o mundo.
Existem livros que apenas valerá a pena ler uma vez. Indubitavelmente, D. Quixote de la Mancha é um livro para ir lendo ao longo da vida. E cada leitura será uma redescoberta, tanto da estória como da humanidade que habita em nós.
Até ao próximo capítulo, bons livros e boas leituras!