Crónicas da terra ardente

Ao longe, para lá das montanhas, apenas resistem os mais fortes e os sonhos. A vontade não vacila mais do que a sede de aventuras. Coisa pouca, para quem já caminha desde uma terra da Mancha, da qual nunca se conheceu o nome. Dom Quixote, fidalgo armado cavaleiro pelas vicissitudes da leitura, segue à frente, altivo como um príncipe da História, de lança em cabido, adarga antiga e cavalo senhorial, ainda que o próprio não o saiba. Sancho Pança segue atrás, fiel como um sol de Verão. Para trás tinham deixado uma aventura nuns moinhos junto ao rio Vouga. Julgando ouvir o nome da sua donzela Dulcinea desrespeitado, o inefável cavaleiro investiu sobre os gigantes, a montante de toda a coragem do mundo. Venceu-os, mas a batalha deixou-o tão desgastado que não falou durante toda a subida da encosta.

O horizonte, a crista da montanha tinha a feição do dorso de Rocinante. A planura agilizou-lhes o passo e em menos que o pensassem chegaram próximo do pico. Decidiram contorná-lo e subir pela vertente menos agreste. Para seu espanto, avistaram então um grupo de pessoas, numa matiz de estranhas diferenças. Pareciam ter sido repescadas de eras distintas, pois as suas vestimentas eram muito discrepantes entre si. Dom Quixote e Sancho Pança, atónitos, aguardaram alguns instantes, até que desmontaram e decidiram aproximar-se. As pessoas agrupavam-se de acordo com as parecenças e esbracejavam muito entre si. Contudo, pouco se entendiam, pois falavam línguas distintas.

Um pouco mais afastado, Raskólnikov vagueava pela sua solitude. Chegara recentemente da Sibéria, arrastando ainda com uma réstia de culpa. A custo, tinha encontrado o seu lugar no mundo e estabelecera um equilíbrio de humanidade sentida entre o sofrimento, as acções e a importância que as envolve.

Fornido, Leopold Bloom deambulava pelo monte como um capitão do tempo. De rosto perscrutador, ia delineando os passos que percorrera no dia 16 de Junho, divagando a memória por várias eras, como se as passadas já lá estivessem há muito, num fortuito encontro de vidas. Afinal, todas as existências, maiores ou menores, tocam-se sempre nas pequenas coisas. Recitava versos de Hamlet e pensava cada uma das palavras, tentando perceber a sua origem e como elas se relacionavam com o seu criador. Parou então abruptamente e descortinou um sujeito que cobria o corpo com parcas vestimentas e parecia reunir toda a bravura da vida. Sentiu que o conhecia desde sempre e o seu nome assoberbou-se na consciência como uma indubitabilidade: Ulisses.

Colocados em diferentes patamares da encosta, várias gerações da família Buendía – Iguarán entrelaçavam diferentes histórias entre si num realismo fantástico. Discutiam como tinham chegado até ali e tentavam vislumbrar Macondo para lá da linha do horizonte. Com medo que o atassem a uma qualquer árvore que ali crescesse, o coronel José Arcadio Buendía começou a afastar-se dos demais, até que se sentou num ponto mais alto, onde poderia controlar as intermitências que lhes viajavam pela alma.

Os gémeos Estha e Rahel olhavam, assombrados, para todas as diferenças que passeavam à sua volta. Pareciam dois esquimós largados numa exploração africana. Kerala ficava para lá dos seus sonhos e Velutha era uma estrela intocável num céu de solidão, junto dos outros deuses das pequenas coisas.

Ouviu-se então um estranho barulho, que se arrastava pela encosta. Por detrás de uma rocha, surgiu um homem de rosto cansado e mãos calejadas pela exuberância das elites. O homem comum. Carregava um penedo às costas, quase tão grande como ele. Mas não o carregava tão somente, já que arrastava consigo a história de um povo. Por detrás dos raios de sol, surgiu uma passarola fantástica que, ao passar pelo cume, deixou para trás um homem e uma mulher. Estremunhados, levantaram-se e foram trocando olhares de estupefacção. Partilhavam o nome Sete, mas enquanto um era Sol, a outra era Lua.

Todos falavam e poucos se entendiam. Entre as discórdias e tudo o que não sabiam ou porquê ali tinham sido convocados, surgiu uma figura de chapéu pontiagudo. Trazia uma espada numa mão e um cajado na outra. Atrás de si surgiram outros, diferentes no tamanho e no aspecto. Uns eram pequenos, de orelhas esticadas e vinham descalços. Um outro parecia um deus em forma de homem, com o rosto níveo. Nas costas trazia um arco e flechas. Havia ainda um homem de barbas compridas e que tinha uma coroa na cabeça. Outro era pequeno e anafado, erguendo um machado maior que ele. Atrás de todos, e um pouco distanciado, surgiu uma criatura disforme, com o coração dividido entre o amor e o ódio a um anel.

Mais se juntaram ainda, sendo que a passagem do tempo apenas parecia confundir-lhes ainda mais a consciência. Outros, mais insatisfeitos, acabaram mesmo por se ir embora, levados pelo esquecimento. Quando parecia que, por fim, todas aquelas diferenças iriam redundar num abandono generalizado, surgiu um homem de fato negro, laço a condizer e chapéu elegante. Tinha um bigode que parecia formar um pequeno triângulo. Usava ainda uns óculos redondos, vulgares. Atrás dele pareciam caminhar muitos mais, quais espectros da sua consciência. Tinhas as mãos adejadas de um qualquer trabalho publicitário, mas com a mente erguia o génio do mundo e apenas com a palavra o fazia girar. Colocou-se no meio deles e tirou um caderno do bolso, colocando-o depois no chão. Sobre ele deixou ficar uma caneta. Por três vezes rodou o seu olhar e todos lhe acompanharam os movimentos, como se tivessem sido enfeitiçados pela sua vontade. Levantou então a voz e disse, de tal forma que todos o compreenderam:

– Já se perguntaram quem é que vocês são? Por certo saberão o vosso nome, mas será que se conhecessem mesmo. Eu sei, lembram-se de poucas coisas da vossa vida e mais parece que sempre existiram. Alguns atravessaram os séculos e nunca se perguntaram, até agora, porque é que continuam a ver as pessoas partir e vocês permanecem iguais. Perenes como o sol e a lua. Pois bem, vocês são as personagens do mundo e inspiram todas as vidas que vos conhecem. Nasceram de uma ideia, mais ou menos clarividente, que cresceu depois até vos tornar em tudo aquilo que são. Metáforas da vida. Vocês são mais do que um nome; vocês são mais do que uma ideia. São o espelho do mundo e toda a humanidade se resume num ponto infinito da vossa consciência. Fui quem vos convocou para virem até aqui. O Portal do Mundo, entre o Céu e o Inferno. Deixo-vos uma caneta e um caderno em branco, que tem quantas páginas conseguirem imaginar. Estou certo de que saberão o que fazer. Criem a vida!

Depois de falar, o homem ajeitou o chapéu, sorriu em volta, e começou a caminhar, abrindo uma clareira entre a multidão que se tinha juntado, desaparecendo de seguida. Os personagens, cada um na sua vez, pegaram no caderno e deixaram que a caneta lhes discorresse a alma, numa linguagem sentida que todos entenderam.

Crónicas da terra ardente

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