Crónica dos campeões

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Portugal ganhou. O país esperou décadas por esta vitória, que dificilmente poderia decorrer num contexto mais memorável. Gosto muito de futebol, mas não tenho por hábito discuti-lo ou comentá-lo. Prefiro ver e gosto ainda mais de o jogar. Tudo o que vai para além disso entra agora na esfera do secundário. Mas nem sempre fui assim. Como milhões de crianças, cresci a dar pontapés num sonho e respirava futebol. Todos os locais e circunstâncias eram bons para jogar à bola, mesmo quando não existia bola. A escola era o sítio onde existiam intervalos que serviam para jogar futebol. No verão, todos os dias havia jogos na aldeia. Quando era preciso ajudar os pais, íamos no final a correr para a peladinha do entardecer. Depois do jantar, ficávamos até à meia-noite a jogar na estrada, inventando balizas nas porteiras e fintas ao sono. Tudo o resto parecia acessório. Os jogos com as aldeias vizinhas eram autênticas finais e perder era a pior catástrofe do mundo. Não era apenas futebol, era algo mais importante: jogar à bola.

Esta ânsia não se limitava à prática; era muito importante estar informado. Conhecer o nome de todos os jogadores da equipa e dos principais adversários; comprar pelo menos uma vez por semana o jornal, alternando entre A Bola e o Record; assistir a todos os programas d’Os Donos da Bola e tirar apontamentos (consegui completar a lista de todos os vencedores do campeonato português e da Taça dos Campeões Europeus apenas com as perguntas que saíam – é incrível o que tínhamos de fazer para conseguir estas estatísticas; agora bastaria um click), entre outros. Depois, à medida que a vida foi seguindo por atalhos e os estudos foram adquirindo mais importância, o futebol foi sendo relegado para segundo plano. A forma física foi descurada, perdeu-se o jogador, mas vincou-se o adepto. Mais tarde, quando tudo servia para noticiar o futebol, comecei a perder algum interesse. Muitas vezes, os meios de comunicação parecem concorrer em quem consegue apresentar a melhor não-notícia futebolística. Depois da curva, comecei mesmo a olhar de forma mais interessada para outros desportos, nomeadamente o atletismo.

Neste domingo, na final do Euro2016, regressámos todos ao sonho de infância, à essência do futebol de rua e à satisfação inocente e merecida de ganhar algo que parecia estar para lá das nossas possibilidades. Depois do chauvinismo, do histórico desnivelado e das contrariedades, Portugal vibrou de emoção com o golo do Éder. Parece que foi o próprio país, pela força da esperança, a dar o pontapé no destino. O tempo susteve-se depois em celebração e assim continuará enquanto houver memória. Creio que no princípio de tudo esteve Fernando Santos. Já muito se disse e escreveu sobre a sua inusitada confiança, mas é realmente uma história incrível. Os outros países poderiam ter bons jogadores, mas ninguém acreditou mais do que ele, antes e durante a competição. E a sorte acabou por sorrir a Portugal! Foi merecido, pelos jogadores, pelos portugueses, não apenas de Portugal mas também de coração, e sobretudo pelos portugueses emigrantes em França, numa extraordinária lição de humildade e querença.

É obviamente questionável a importância exagerada que o futebol tem na nossa sociedade. Por coincidência, atletas de outras modalidades sagraram-se campeões europeus no mesmo dia e o tratamento foi muito diferenciado. Porém, nada em Portugal consegue extravasar a dimensão do futebol. À exceção de alguma catástrofe, não consigo imaginar outro acontecimento que possa tornar-se notícia planetária e levar o nome do país às quatro curvas do mundo. E o país apenas tem a agradecer, tanto por ser uma boa notícia como por este manancial de esperança a distribuir pelo dia-a-dia. Cumpriu-se o futebol, falta cumprir-se Portugal. Obrigado, campeões!

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