Nos últimos anos tem-se assistido a um crescimento muito acentuado no número de participantes que se dedicam a correr em trilhos de montanha (trail running). Na verdade, pode afirmar-se que esta atividade/desporto sempre existiu, em particular desde que Feidípedes correu entre Maratona, Esparta e Atenas, inspirando o aparecimento de várias provas míticas. Porém, apenas nas últimas décadas a prática deste desporto foi generalizada. Em todo o mundo existem inúmeras provas de trail running, desde a concorrida Ultra Trail du Mont Blanc até à dificílima Barkley Marathon (em 29 edições/anos, apenas 16 participantes conseguiram terminar a prova). Em Portugal existem também várias provas do género, com destaque para a Ultra Trail Serra da Freita, Gerês Trail Adventure, Estrela Grande Trail e ainda para a Madeira Island Ultra Trail. Todos os anos, milhares de atletas partem em busca dos seus limites nos trilhos seculares das nossas montanhas. Estes desafios encerram as infindas estórias de superação que perfazem a história recente do trail running.
Para muitos leitores poderá parecer estranho como é que alguém, aparentemente lúcido e de forma consciente, se sujeite a tamanho sofrimento, correndo dezenas ou centenas de quilómetros numa prova de superação pessoal. Porém, após os primeiros passos periclitantes, rapidamente a corrida se pode transformar em algo muito prazeroso e mesmo viciante. A corrida por trilhos de montanha representa um desafio acrescido, pela necessidade de vencer a tecnicidade e os obstáculos associados, num espaço de liberdade tangível e com cenários memoráveis. Terminar um desafio destes é absolutamente inefável. Apesar de as provas também encerrarem alguma competitividade, subsiste no trail running um incrível espírito de entreajuda e existem inúmeras estórias de participantes que desistem de ganhar uma prova para ajudar um colega em dificuldades. Mais do que correr contra os outros, cada atleta corre contra si (a nível físico e sobretudo a nível mental).
Neste artigo, no contexto da realização do evento GeoTrail Montanhas Mágicas [Drave] (GC5RPFC) e numa viagem de superação pelas suas experiências e conselhos sobre este fascinante desporto, convidamos dois geocachers que são também trail runners: o João Pires (Merlin022) e o Joaquim Ribeiro (ninigt).
Joaquim Ribeiro – Ninigt
Foi através do trail running que tive conhecimento do geocaching. O meu primeiro contato com esta vertente do atletismo foi aquando da minha ida aos Alpes para percorrer o Tour du Mont Blanc (TMB). Estávamos em agosto de 2005. No dia em que terminei a volta (160 kms em 8 dias) na cidade de Courmayer, começava do outro lado do Monte Branco, em Chamonix, a terceira edição do ainda pouco famoso Ultra Trail du Mont Blanc (UTMB). A passagem dos primeiros atletas estava prevista pela organização lá para as 3 horas da manhã e fiz questão de lá estar para os ver passar. Assisti ainda ao abastecimento de alguns e voltei depois para o hotel. Ainda de manhã, passaram vários grupos de atletas, muitos deles calçando botas, e não sapatilhas, como hoje é vulgar. Foi aí que decidi que quando chegasse a Portugal iria experimentar correr por trilhos que dantes percorria de BTT ou a caminhar. De forma natural, comecei pelo Bussaco, que é aqui ao lado de casa.
Os primeiros tempos foram muito difíceis, principalmente para os joelhos, pois não estava habituado a correr e era algo que nunca pensei fazer. Outro aspeto que complica um bocado quem quer começar uma atividade diferente é a companhia; e eu nesta fase andava sozinho. Mais tarde fui-me juntando a outras pessoas e o incentivo passou a ser outro.
No ano de 2007 soube da existência do Ultra Trail Serra da Freita (UTSF) e logo me quis inscrever. Não na distância grande, mas sim nos 15 kms. Como foi muito em cima da data da prova, já não me foi possível participar. Mas fui ver a passagem dos ultras no famoso Trilho dos Incas. Nesse ano, o Dean Karnazes veio cá dar uma perninha e tive o prazer de o ver passar no final da subida que vai desde Covêlo de Paivô até à Póvoa das Leiras.
No ano seguinte estive na partida (e na chegada) da Corrida da Freita e mal terminei disse que no ano seguinte iria tentar chegar ao final do UTSF. Para preparar a minha participação nesta prova, fui fazendo outras de menor distância como o AXTrail, o Trail do Sicó, o Trilho do Pastor e muitas outras corridinhas a sair e a chegar a casa.
Para ajudar na minha preparação adquiri um GPS de pulso; já tinha um portátil, mas não era adequado para correr. Ao ler as instruções tive o conhecimento de uma atividade que dava pelo nome de geocaching e logo fiz o meu registo, mas fazer caches nem por isso.
Em 2009 estive na partida do UTSF, mas não cheguei ao final pelo meu pé. Nesse ano, a distância subiu de 48 kms para 60 kms e resolvi parar quando descia para Gourim, aos 30 kms. Os joelhos não aguentaram. Um ano mais tarde foi a vez de ficar na Póvoa das Leiras (km 40, de 70), já a controlar fora do tempo. Em 2011 finalmente cruzei o arco de meta do UTSF pelo meu pé.
Em outubro de 2012 desloquei-me a Caminha para a segunda edição do Grande Trail da Serra d´Arga (GTSA) com o meu companheiro de trilhos, Merlin022, que na altura já procurava ativamente caixinhas. Após as jornadas técnicas do GTSA, ele quis ir fazer a cache Igreja Matriz de Caminha (GC18R6J) e foi aí que lhe disse que também estava inscrito nessa “coisa” do geocaching, mas nunca tinha ido à procura de nada. Foi a minha primeira cache e desde então tento conciliar as duas atividades, procurando caches espaçadas para poder correr um bom bocado entre elas, não perdendo muito tempo à procura quando se tornam teimosas em aparecer. Se sai um DNF, fica um motivo para uma nova incursão na zona para mais uma corridinha. Antigamente saía de casa para correr escolhendo o local, agora existe outra variável que é ver as caches que ficam pelo caminho.
João Pires – Merlin022
O meu contato com o trail deu-se em 2007. Já antes tinha feito algumas provas do circuito nacional de montanha, mas um minucioso e entusiasmante relato sobre uma prova, no qual os participantes eram “endeusados” (perante os nossos hábitos desportivos, o que eles faziam ia muito além da normal capacidade e da prática desportiva da época), fez com que a minha vontade em conhecer essa realidade fosse imensa. Quando dei por mim já andava a saltar de pedra em pedra, a atravessar rios ou a correr em magníficos cenários por esse país fora. Essa prova era a Ultra Trail Serra da Freita, pioneira no conceito de trail no nosso país e, ao mesmo tempo, carregada ainda hoje de uma mística que a torna especial e única no calendário nacional de provas, que nos últimos anos cresceu de uma forma abismal.
Para mim, todas as modalidades desportivas têm uma identidade própria e o trail running não foge à regra. Esta vertente da corrida assenta a sua ideologia numa atividade física de forte ligação à natureza, fazendo desta a “fonte” dos obstáculos que o praticante se propõe superar. Ou seja, praticar trail running é fazer dos obstáculos naturais a forma de nos superarmos e de nos redescobrirmos, para além de ficarmos a conhecer muito melhor os espaços que nos rodeiam.
Pessoas diferentes poderão definir de outra forma o trail running, tanto que com a proliferação das provas surgiram novas vertentes da modalidade (como o trail urbano), mas é inequívoca a sua ligação à natureza, pelo menos no seu conceito original. Quando tento explicar esta paixão a quem não pratica, costumo dizer que com uma boa forma física, num single-track técnico, ou mesmo sem caminho evidente, o sentimento de correr na natureza é equiparado a um qualquer animal selvagem a correr num bosque ou numa montanha. Trata-se de uma sintonia perfeita e nós não nos sentimos agressores do meio, mas sim parte dele. É importante referir que para perceber e interiorizar este conceito, na minha opinião, é fundamental fazê-lo pelos motivos certos. Ou seja, os desafios devem servir para provar algo a nós próprios. Se forem realizados com o intuito de mostrar ao mundo as nossas conquistas, poderemos estar longe do conceito por detrás desta modalidade. Consequentemente, estaremos também longe de tirar o melhor partido do que ela tem para nos oferecer.
Nos últimos tempos temos assistido a uma adaptação das organizações das provas ao que o público (corredores) pede. Isto faz com que os desafios cheguem a atingir proporções, em termos de dificuldade, que há poucos anos eram impensáveis! Com este aumento, seja do tempo, da distância ou do esforço, a relação entre o recrutamento físico e o psicológico tende a aumentar para o segundo. De tal forma que um praticante de trail de longas distâncias ou tem características pessoais que por si facilitem a sua adaptação a tão exigentes desafios, ou deve ter em conta, de uma forma séria, que o trabalho de reforço psicológico (controlo de motivação, etc) no seu planeamento e preparação é fundamental!
Diferenças entre trail running e corrida de estrada
Uma das maiores diferenças entre as duas vertentes de corrida são as metas a atingir. Enquanto no trail o grande objetivo é superar obstáculos naturais (montanhas, vales, rios, etc), pelo menos no convencional (não urbano), na estrada, os objetivos são normalmente canalizados para a obtenção de uma determinada marca (tempo) numa distância específica. Isto faz com que o fator intensidade seja mais fácil de controlar na primeira vertente (trail); somando o facto de os percursos serem todos bastantes distintos, a pressão de alcançar determinada marca fica diluída pelo enriquecimento obtido ao usufruir de toda a envolvência associada a este tipo de prática desportiva. Além disso, e com o aumento do número de pessoas a correr com idades superiores aos trinta anos, é de ter em conta que o fator intensidade deve ser reduzido na prática desportiva em detrimento da resistência, que se perde muito mais gradualmente com a idade. Ainda, se for devidamente bem treinada, será bastante menos agressiva no que diz respeito a provocar mazelas físicas, que nem sempre são lesões simples e fáceis de tratar.
Convém também distinguir o trail running das restantes corridas de montanha. A diferença, de um modo geral, está no fato de no trail os percursos serem bastante mais técnicos. Apesar de atualmente, por necessidade, com o aumento do número de provas e praticantes, alguns percursos serem mais característicos das corridas de montanha do que propriamente de trail. Com o tempo e as constantes adaptações, começa a perder sentido fazer essa distinção. No entanto, a tecnicidade é fundamental para permitir que os praticantes sintam a ligação à natureza e não se limitem a fazer “estradões” a subir e a descer!
Existem mais diferenças entre estes tipos de corrida, mas por muito que tente ser imparcial, a minha escolha pessoal é tão óbvia que estarei sempre a encontrar virtudes de um lado e a colocar defeitos no outro.
Gostavas de começar a correr?
Gosto de pensar que tudo o que fazemos tem um propósito ou objetivo. Ou seja, trabalhamos para nos sustentarmos, fazemos geocaching para nos divertirmos, etc. Se esses objetivos não forem cumpridos, se deixarmos de receber ordenado ou se deixarmos de ter prazer em fazer geocaching, deixaremos também de trabalhar e de colocar e procurar “tesouros” escondidos. Assim, para começar a correr é fundamental que os objetivos estejam bem definidos. Estes devem ser realistas e sempre baseados em nós, e não naquele ser aparentemente perfeito que tem um desempenho físico espetacular, que consegue ou parece conseguir alcançar tudo a que se propõe! (quem não tem um amigo ou vizinho assim?).
O tempo é também um fator fundamental, pois começar a correr é normalmente bastante doloroso nos primeiros meses. Porém, asseguro que é depois bastante compensador. Não se pode é querer passar de caracol a lebre em dois tempos, pois mais cedo ou mais tarde o corpo irá começar a dar sinais de desgaste (na melhor das hipóteses). O ideal é correr pouco, tanto em intensidade como em distância ou tempo, e aumentar gradualmente, procurando pisos menos agressivos (terra batida), e em cenários de grande beleza. Isto poderá tornar menos penosa a tarefa de correr na fase inicial, e depois ganhará relevo a resiliência de cada um!
Por norma, quem começa a correr procura fazê-lo em grupo. Tal faz todo o sentido, pois é uma forma de partilhar as dificuldades e as pequenas vitórias com quem nos pode ajudar a manter a motivação para querermos sempre mais. Porém, caso se deseje passar paulatinamente para as longas distâncias, seja nos treinos ou nas provas, torna-se importante o treino individual, tanto pelo seu considerável reforço a nível mental, como pelo facto de que se queremos ser um praticante de referência, ou um corredor consistente, não podemos estar reféns de alguém para nos acompanhar.
Certo dia, ouvi na rádio uma grande senhora e atriz portuguesa, Eunice Muñoz, que ao ser questionada sobre o facto de viver sozinha, apesar da sua idade já avançada, respondeu: “Tenho tanta coisa dentro de mim que nunca me sinto só!”. Fazendo um paralelismo com a corrida (especialmente nas longas distâncias), esta frase serve para nos mostrar, com base na minha experiência e no conhecimento adquirido ao longo de anos de prática, aquilo que podemos redescobrir em nós. Por mais estranho que possa parecer, a busca dos nossos limites leva-nos a um conhecimento mais aprofundado sobre quem somos e sobre o que existe dentro de nós. Não sei se a atriz Eunice Muñoz praticou algum desporto de resistência e de longa duração, mas esta capacidade mental é essencial no trail running! Se estivermos atentos aos maiores nomes do trail, percebemos que passam muitas horas a treinar sozinhos nos montes. Isso não acontece porque lhes falte companhia, mas sim porque é um reflexo da necessidade de se fortalecerem psicologicamente através do seu autoconhecimento, e de criarem uma ligação o mais possível simbiótica com o ambiente que os irá rodear nas provas. O importante é acreditarmos em nós!
Para além do que já referi, é muito importante ter atenção ao calçado. Tanto pelo facto de ser ou não apropriado à prática específica da corrida, como para o nosso tipo de passada (pronadora, neutra ou supinadora). Muitas vezes, quando se tem problemas em manter a motivação para treinar, por mais estranho que possa parecer, a solução passa por comprar equipamento novo (ténis, camisola, calções, corta-vento, etc). De um modo geral, todos gostamos de ter a imagem da figura modelo que aparece nas revistas da especialidade. Bem equipados e com a perceção de que somos os maiores especialistas e os mais experientes da modalidade, mantemos a motivação, mesmo que a realidade esteja bastante distante desse nível.
Para terminar, se procurares aconselhamento, não procures alguém que estará mais preocupado em contar e demonstrar os seus mil e um feitos, com capacidades acima dos comuns mortais. Ao invés, procura alguém que realmente possa acrescentar algo, por mais pequeno que seja, ao que já sabes. Se todas as semanas aprenderes mais qualquer coisa sobre trail running, verás que ao fim de um ano terás 52 razões para tirar um enorme prazer da corrida!
Artigo escrito em conjunto com João Pires (Merlin022) e Joaquim Ribeiro (ninigt),
na sequência do evento GeoTrail Montanhas Mágicas [Drave],
publicado na GeoMagazine #15.