Sombras de Silêncio #362

Na manhã de domingo, Girolme experimentou pela primeira vez uma carga de esforço desfasada das suas capacidades, ao retirar o estrume do curral. No entanto, nem no trabalho nem no descanso logrou queixar-se pelo tratamento. Porém, em vez de ir passar a tarde em festa na aldeia, conforme tinha combinado com Manel, acabou por ficar a descansar no mosteiro. Foi até à abóbada e por lá se deitou sobre a palha. Dormiu durante toda a tarde, embalado pelo canto mercenário das pombas que mais acima tinham construído um reino de poder pela mestria das suas asas.

Quatro dias depois, na quinta-feira da sexta semana após a Páscoa, celebrou-se a festa em honra Nossa Senhora da Cabeça. Houve missa campal e os peregrinos rodaram as promessas em volta da capela. Em simultâneo, para lá dos limites da fé, decorreu uma feira. Os comerciantes chegaram no dia anterior, sendo que as barracas de comes e bebes ocupavam mais de metade dos espaços. Os pregões rivalizaram com a homilia e o dinheiro mudou de mão com a subtileza de um aperto. Durante a noite improvisaram-se espetáculos de cantorias e danças, sendo que os menos exibicionistas mantiveram-se nas tendas, trocando conversas e copos de vinho como quem cumprimentava o sol, refugiando as subtilezas entre as sombras da lua. Girolme ficou maravilhado com a festa, posto no sossego de uma conversa sobre algumas histórias da aldeia com o seu amigo Manel.

Por vezes, Manel ia ter com Girolme e ambos discutiam alguns aspetos da vida, apresentando cada um o seu ponto de vista. Cada qual levava ilações importantíssimas das tertúlias. Certo dia, as conversas tornaram-se um pouco mais complicadas, pois Manel insistiu que passaria a falar como um poeta, terminando cada sentença com o tom “ão”, de forma a garantir que tudo o que dizia rimava entre si e com o mundo. Desculpou-se que era a natureza que o inspirava a tal canto. Porém, algumas palavras, mais teimosas, não se adequavam à nova dialética do poeta da natureza. Manel moldava-as ao seu jeito e forçava as rimas, como se fosse um filólogo inexorável, dificultando a compreensão aos ouvintes.

Girolme ainda tentou imitá-lo, mas descobriu que não tinha a mesma perícia do amigo. Mais tarde, Manel adotou uma nova forma de comunicar, adiantando sempre a característica antes de um qualquer objeto, animal ou pessoa. Assim, quando queria dizer que havia um animal que lhe andava comer a sementeira de milho, referia-se ao prevaricador como sendo o “bicho pássaro”. Também Girolme foi apanhado na mudança, já que passara a ser o “home Girolme Risadas”. Manel explicaria mais tarde que tinha sido a quantidade imensa e confusa de palavras, algumas com significados diversos, que o tinha obrigado a falar daquela maneira. Por vezes, algumas pessoas insistiam em atribuir-lhe epitáfios e alcunhas depreciativas, mas ele respondia quase sempre da maneira, conforme a mãe lhe ensinara: «eu nom sou um tolo, sou um home».

Sombras de Silêncio #362

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