Sombras de Silêncio #296

Preso às memórias, Girolme lembrou-se também da vida que não teve com a sua princesa. Pensou que nem mesmo com ela estaria livre da tristeza e monotonia dos dias e pareceu-lhe que tal também deveria estar relacionado com uma certa insaciabilidade das pessoas, que ignoram os momentos de felicidade e apontam os sonhos para a felicidade total. «Mas quem é que consegue ser sempre feliz?», inquietava-se. Compreendeu depois que quanto mais insistisse em remexer nas memórias do passado, mais triste seria. Pareceu-lhe que a questão era semelhante à dúvida sobre a existência de Deus, que o seu amigo Bernardo lhe tentara inculcar. Decidiu-se por fim a não pensar mais a saudade e resolveu voltar a outras aventuras, abandonadas desde Peniche.

Logo depois do divórcio, Estupidus arrependeu-se profundamente da decisão e prometeu que iria passar o resto da sua vida a tentar conquistar a sua princesa Destinus, sobretudo depois de o conseguir. Contudo, e de acordo com as leis do reino, teria de sujeitar-se a uma série de provas. Se conseguisse passar, caberia à princesa decidir se o aceitava. Estupidus teria de começar por encontrar uma pedra muito rara, no fundo de uma gruta cuja entrada apenas era visível em noites de lua cheia. Estupidus partiu ao raiar da esperança. Ao longe, e num tom subtil, mas empenhado, ecoou então uma melodia que falava de uma vila morena, terra de fraternidade.

Algumas horas depois, Girolme acordou estremunhado no sofá, largando arrepios de insatisfação. Desajeitado, levantou-se e deixou-se cair para o sofá com uma dor desagradável nas costas de supetão. A telefonia cantava desgraças de outros homens. Esteve mais alguns minutos a esfregar os olhos e a lamentar-se, levantando-se depois com mil cuidados. Ajeitou o cabelo e foi até à cozinha perder-se da fome. Pegou depois no pífaro que repousava sobre o sofá e saiu do apartamento, descendo até à portaria do prédio. Pelo caminho, foi ultrapassado por um rapaz, recente no prédio, que desceu tão esbaforido que nem sequer se dignou a qualquer tipo de cumprimento casual, numa corrida cega por apanhar os pedaços dispersos do dia. Chegou por fim à portaria do prédio e encantou-se com um molho de cravos que ali estavam num balde de plástico. Não sabia quem os deixara ali ficar, mas ficou contente com a surpresa. Sorriu e não se coibiu de os cheirar como se fossem instantes de prazer. Surgiu então mais um morador apressado que nem esperou que Girolme lhe abrisse a porta.

– Hoje não é dia para cheirar flores; os espinhos estão a picar!

Sombras de Silêncio #296

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