Sombras de Silêncio #294

Certo dia, Bernardo levou-o a uma final da Taça de Portugal em futebol no Estádio Nacional, num jogo em que os benfiquistas ganharam aos estudantes de Coimbra pela diferença mínima. O evento ficou também marcado por alguma manifestação popular contra o regime vigente. Para Girolme, que nunca tinha visto tanta gente confinada num determinado espaço, a experiência começou por ser terrivelmente assustadora, mas a alegria popular acabou por acomodá-lo à festa inebriante. Apesar de inicialmente não compreender o interesse de correr atrás de uma bola, Girolme acabou por ser imbuído pelo espírito e também celebrou a vitória.

Algum tempo depois, numa noite em agosto, foram de táxi até ao Bairro Alto e Bernardo levou-o a uma taberna onde se cantava o fado. Ficaram os dois, até cerca das três horas da madrugada, a escutar o carpir das mágoas dos fadistas. Girolme ficou muito admirado e sensibilizado; espantava-o a forma triste e pesarosa com que as pessoas contavam as suas tristezas, mas sempre de uma forma harmoniosa. Concluiu então que, por maior que fosse a dor sentida, o canto conseguia transformá-la em algo inexplicavelmente belo e atrativo. Bernardo referiu-lhe que o fado era um destino de todos os portugueses.

Ainda nesse ano, num dia de feriado nacional, Bernardo chegou ao parque com um embrulho e ofereceu-o a Girolme, que o abriu à pressa. Depois do relógio de bolso e da gaita-de-foles que o pai lhe oferecera há cerca de meio século, era o terceiro presente que ele recebia na vida. Tratava-se de um rádio Dynatron, de cor castanha com quatro botões e uma linha branca onde estavam marcadas as várias frequências. Bernardo explicou-lhe o modo de funcionamento e Girolme foi de imediato para casa experimentá-lo, regressando logo depois com muitas dúvidas. Porém, estava felicíssimo. Foi pelo rádio, e após uma longa ausência de Carlos, que Girolme veio a saber que amigo doutor António, o homem que por duas vezes o repescara para a vida, tinha falecido.

Sombras de Silêncio #294

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