Sombras de Silêncio #275

No final de mais de três anos de peripécias, Bilinho e Girolme avistaram Lisboa na manhã do primeiro dia de agosto. Guiados pela imagem do Cristo-Rei, atravessaram o Laranjeiro e subiram ao monte onde o colosso abria os braços à fraternidade do seu povo.

À sua maneira, cada um tinha mudado. Miguel mantinha o aspeto escanzelado, de cabelo desaforado e abundante, mas cada vez mais esbranquiçado; também a barba estava mais esbranquiçada e apenas era aparada a cada duas semanas; o bigode desaparecera pelos conselhos de Bilinho. As roupas já não eram as mesmas com que saíram de Moura. Foram roubados numa ribeira perto de Palmela, enquanto tomavam banho, e foi com muita dificuldade que conseguiram arranjar outras; as cores berrantes, desde o lilás ao laranja, captavam de imediato a atenção de quem os visse, enquanto um olhar mais atento revelava a sujidade, os rasgos e o ar desmazelado.

Bilinho deixara crescer a barba e o cabelo ruivo, que se entrelaçava em caracóis; a barba criava um efeito surrealista, já que na zona do bigode tinha tonalidade mais escura. Cada um levava um guarda-chuva preso à gola da camisa, suspenso sobre as costas. Apesar das sucessivas perdas e fugas, conseguiram sempre recompor-se e continuar. Chegados àquele sítio de grandeza, com a enorme estátua a governar tudo à sua volta, pareciam dois super-heróis retirados de uma cartilha de banda desenhada, com as cores bizarras e o poder secreto bem guardado na imaginação.

Entre as margens do rio erguia-se a maior ponte que alguma vez eles tinham visto. Ficaram de tal modo fascinados pelo rendilhado elegante e robusto da travessia que concordaram de imediato que tal empreendimento deveria ser uma obra de Deus. Na outra margem, o aglomerado de casas estendia-se de forma harmoniosa pelas diversas colinas, que pareciam ali colocadas propositadamente com o intuito de proteger Lisboa dos provincianismos. Alguns homens andavam a limpar a zona circundante ao monumento. Outros iam passando, despreocupados. Ao redor do rio, o burburinho das máquinas levantava uma impaciência própria, discorrendo a pressa da vida envolvente. Sobre a ponte, os automóveis seguiam lestos e em fila, como formigas dedicadas.

Sombras de Silêncio #275

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