Sombras de Silêncio #262

A novidade de que havia alguém a ajudar Bilinho passou de boca em boca e ao fim de poucos dias já quase todos na vila conheciam Miguel. Era até consensual que ele parecia ser boa pessoa. Porém, Moura trataria de o receber à sua maneira. Existia na vila um senhor que tinha por hábito rebatizar as pessoas que chegavam. Tudo começara como uma brincadeira, mas transformara-se numa obsessão. Apenas os habitantes locais estavam incólumes. Assim que o viu, o homem concluiu que Miguel tinha cara de Jerónimo. Não se sabe que referência lhe serviu de inspiração. A vila também acabou por validar e promover a mudança de nome.  

Bilinho ainda esteve algum tempo para se libertar de algum receio pela brincadeira da motorizada. Foi apenas depois de receber trezentos escudos do presidente da Câmara que voltou a entrar na taberna, sendo que Miguel não voltou a acompanhá-lo. Entretanto, os dois passavam as noites em casa, discutindo a intenção de arremeter em direção a Lisboa. Bilinho mostrava-se mais cauteloso, mormente pelas certezas que ali moravam com ele.

Cerca de duas semanas depois da chegada de Miguel, Bilinho voltou ao regaço da rotina e todas as noites saía lesto para a taberna, logo depois do pôr-do-sol. Regressava a meio da noite, embriagado e cantarolando pelas ruas. Mas nem sempre regressava na própria noite. Por vezes, durante a viagem, era acometido por tantos e tamanhos perigos que a simples caminhada transformava-se numa odisseia incerta. Ou o chão lhe escapava debaixo dos pés ou parecia haver um estranho vento que o prostrava. As suas lutas eram tremendas! Quem assistisse a tais querelas não conseguiria descortinar com facilidade o que realmente se passava. É sabido que apenas alguns têm o dom de ver para lá do óbvio.

Depois de os últimos raios de sol desaparecerem na planície, a ausência de Bilinho entregava Miguel a um espaço de reflexão que se foi tornando pequeno. Passou também a sair de casa, dando passeios errantes pela vila e contornando as esquinas da memória. Tais saídas chegaram ao conhecimento do povo, tendo como ponto de partida a mercearia adjacente à taberna de Afonso e que era explorada pela esposa. Apesar de inicialmente suscitarem alguma desconfiança, com o passar do tempo os passeios noturnos de Miguel Jerónimo tornaram-se habituais. Havia até quem se pusesse à janela para o ver passar e tentar perceber o que ele ia murmurando.

Sombras de Silêncio #262

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