Miguel pensou depois em Ana Maria, que já estava a um dia de distância, e como teria sido se ao menos tivesse tido a coragem de lhe dedicar uma palavra ou um gesto. Se ao menos soubesse o que estaria para vir! Recuperaria em poucos anos o muito que a vida lhe escondera? Descontente, voltou-se para o passado, revirando depois o pensamento em saudade para as memórias da sua princesa.
– Isso é coisa p’ra ser logo à primeira vista – respondeu-lhe Bilinho, sem querer adiantar pormenores que o pudessem desnecessariamente comprometer.
Miguel inspirou de forma profunda, voltou-se para o horizonte que se estendia para lá da janela e disse por fim:
– Mira que isso nã é siempre assi.
Bilinho pensou em formas de provar a sua perspetiva e enumerou-as de seguida. Referiu gostos e sentidos, divagando sobre uma alma escondida que nos habita, mas que apenas alguns conseguem vislumbrar. Miguel, ainda que o escutasse, já não lhe dava muita atenção. Mantinha-se junto à janela, mirando o céu a desvanecer-se sob uma escuridão envolvente e inevitável. Considerou o seu passado e todos os medos que o obrigaram a fugir de um lado para o outro. Bilinho continuava a falar ao sabor da sua imaginação. Miguel pôs depois as mãos sobre o vidro frio e prometeu que não voltaria a fugir. Estava farto. Olhava para trás e notava o trilho da fuga que culminava numa noite à beira do Tejo, há muitos anos atrás. Desde que fugira de casa do tio foi alternando de vida o tempo suficiente apenas para voltar a fugir. Acabou sempre desgarrado das pessoas, sozinho e suscetível a encontros infelizes. Firmou as mãos, o olhar e a vontade num anseio forte e implacável de abandonar a vida errante. Se Bilinho se gabava das muitas mulheres que por ali passavam, até podia ser que alguma rejeição alheia lhe calhasse em sorte, com o devido perdão e consentimento da sua princesa e a benesse de Nossa Senhora.
– Tem por aí mais pão? – repetiu Bilinho, dando-lhe uma leve pancada nas costas.
– Já acabou – respondeu Miguel.
