Sombras de Silêncio #168

Saraiva desencantou do fundo do baú umas calças verdes, apertadas e curtas, uns sapatos castanhos pontiagudos e uma camiseta rubra pequena para Miguel experimentar. De forma a completar a criação, atou-lhe um pedaço de serapilheira à cabeça a servir de chapéu. Apesar do aspeto estranho, Miguel ficou encantado com a fatiota e procurou a aprovação num sorriso de Ritinha, que estava a seu lado. Porém, ela desviou o olhar e ignorou-o, arrebitou o nariz e foi cozer as batatas. Miguel concluiu que ela estava mesmo disposta a não revelar indícios do amor que os unira, num passo perfeito e harmonioso.

Já depois do pôr-do-sol, com a fome enganada e de indumentária posta, os artistas aguardavam das cortinas a chegada das pessoas. Quando notou alguma impaciência no público, Hércules atravessou as cortinas e começou a expor a sua vida em misérias. À medida que a história ia avançando, a princesa Sibela e o gigante Enormus dobraram também as cortinas, deixando Miguel e Ritinha a sós com as suas incertezas, inquietações e timidez. Miguel, que passara o dia a suspirar por aquele momento, pensando em dizeres doutos e assertivos, ficou num ápice sem ideias ou pensamentos, tremelicando de nervosismo e ansiedade. Ambos foram desviando as atenções entre o vazio e o palco, à espera que o outro tomasse a primazia.

– Esta vida é espetacular! – disse por fim Miguel.

– É o fartaburros dos parvos! – respondeu Ritinha, de soslaio.

Miguel não compreendeu o que ela pretendia significar, mas não quis representar o papel de ignorante e apenas esboçou um sorriso. Ela não sorriu e nem sequer o encarou.

– Mas tu não eras um doutor?

Miguel foi surpreendido pela questão e esteve por breves momentos a tentar arranjar uma resposta elegante e aprimorada, mas não lhe surgiu ideia alguma. Lembrou-se depois das palavras de Antero e, convicto de que ela haveria de ficar admirada com a sua destreza, respondeu:

– Tens razão, também sou doutor. Antes era pastor e depois de vir para Coimbra fiquei doutor. Mas, se queres que te diga, até prefiro ser chamado de pastor. Sou o pastor Miguel Fernandes, muito prazer!

Sombras de Silêncio #168

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