Solidão

Solidão

“Coloquei o joelho direito no chão, baixei o rosto e assentei a testa sobre as mãos, enquanto segurava a adaga ensanguentada. Entre a miríade de pensamentos que se precipitaram em mim naquele instante, senti-me sobretudo incapaz, frágil e impotente. Os lusitanos sobreviventes estendiam-se em inúmeros grupos pela planície e colinas limítrofes num cenário de tristeza macilenta. Ao longe, entre o burburinho da vitória romana, estendiam-se milhares de mortos pelo vale, em forma de gritos abafados pela agonia contra a esperança. O sol, mirone das nossas fragilidades, erguia-se a pique no céu nebuloso.

Depois do massacre, Sulpício Galba foi chamado a Roma e deixou de ser pretor na Hispânia. Estranha luz esta, que queria iluminar o mundo entre as sombras de outras que extinguia. Caio Vetílio assumiu o cargo e marchou para Corduba. O consílio lusitano decidira responder ao ataque romano. Unia-nos a sede de vingança, mas continuava a faltar-nos um líder. Parecíamos uma manta de velhos retalhos, cosidos pela mão trémula de um ancião feiticeiro. Os chefes de cada clã ficaram de recrutar todos os que estavam minimamente aptos para o combate, desde que tivessem passado a iuventos e pudessem segurar uma adaga.

Os lugares da Lusitânia foram esvaziando à medida que a inquietude crescia, entre os hiatos do tempo. O encontro tinha sido definido num lugar que aprendemos a conhecer como Monte de Vénus, uma colina situada junto ao rio Tagus. Ali vimos nascer o sol por sete dias e marchámos depois em direção a Corbuda. Voltei o olhar para o limite da minha compreensão e questionei os deuses se se trataria de um aviso. Fiz-me mais forte do que as indefinições e juntámo-nos depois aos restantes lusitanos.

Acabámos por nos encontrar num vale de diferenças; éramos guerreiros contra soldados. As duas legiões romanas dividiam-se entre os cavaleiros, os arqueiros, os legionários e ainda algumas dezenas de peças balísticas. Os legionários estavam equipados com uma armadura de cota de malha, um escudo, um capacete, uma lança, uma adaga e roupa resistente. A maioria de nós, peões de intenções, carregava a vontade entre a lança artesanal com uma ponta de ferro, um escudo enfeitado de vingança e a adaga refundida.

Num primeiro momento conseguimos infligir muitas baixas nos inimigos, mas à medida que a supremacia tática romana e liderança inequívoca se espraiava pelo tempo, havia cada vez mais feridas abertas entre nós. A cavalaria inimiga irrompeu pelo campo de batalha e separou-nos ainda mais, o que acabou por inclinar em definitivo o vale para uma vitória romana. Entre a muita vontade e a inconsequência alguém gritou uma ordem de recuo. Quando cheguei o topo da colina estava tão desesperado pela vergonha que me refugiei numa solitude exasperante. Vi-me sozinho, entre a desgraça de muitos.”

in O Tempo Inquieto.


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