Vilarinho da Furna

Nem sempre é fácil compreender o fascínio de uma descoberta de um lugar ou de uma história. É sabido que o subconsciente é pródigo em surpresas inexplicáveis. No meu caso, desde que visitei Vilarinho da Furna pela primeira vez, fiquei verdadeiramente fascinado. Parece que existe algo naquele lugar que subsiste em mim, ou pelo menos em algum tempo perdido da minha memória.

Vilarinho da Furna era uma aldeia comunitária que ficava no sopé da Serra Amarela, por onde atualmente se estende o Parque Nacional da Peneda- Gêres. Em 1971, pela construção de uma barragem no Rio Homem, esta aldeia foi submersa e os seus habitantes tiveram que abandonar séculos de história e tradições, cujas origens se perdem nas brumas da memória. O povo de Vilarinho, para além das leis vigentes no país, tinha também as suas leis internas, que eram escrupulosamente respeitadas e cumpridas. Para isso havia uma Junta, encabeçada por um juiz e que era acompanhado por seis deputados. Aos deputados, eleitos entre os habitantes, competia criar e votar as “leis”; ao juiz, aplicá-las. A junta reunia, normalmente, todas as quintas-feiras, sendo que o juiz, ao raiar da aurora, tocava um corno de boi, convocando os seus ajudantes para a “união”. Ao findar o terceiro toque dirigia-se para o largo de Vilarinho, levando uma caixa onde se encontravam as Folhas da Lei. Era nestas assembleias que se determinavam os trabalhos a realizar e as “condenas” a aplicar. As atribuições do Juiz eram tais que poderia expulsar ou marginalizar alguém do sistema comunitário, deixando o mesmo de ser considerado “vizinho”, o que na prática significava que, futuramente, ninguém o poderia ajudar.

Eu não sou contra o progresso. Sou ainda mais pelo conhecimento. Contudo, neste caso, perdemo-nos mais um pouco de quem fomos. Pior ficaram os antigos habitantes, que foram forçados a deixar a sua história por uma ilusão. Assim foram convencidos, por um dos representantes da companhia hidroelétrica, numa das reuniões anteriores à construção da barragem: “Vocês haverão de ter sempre saudades, mas têm de ser firmes aos vossos princípios básicos, que são estes: o amor a deus e o amor à pátria. E amar a deus, amar a pátria e amar a família em qualquer parte se ama, em qualquer parte se cultivam esses grandes ideais. É isso que eu vos peço!”. Porventura, Vilarinho, que se criou nas águas do rio Homem, sempre alheio a tudo o que existia ao seu redor e fechado num viver de experiências feito, em mistificações seculares dos ruídos do mundo, já não pertenceria a este mundo; talvez já tivesse sido submerso pelas furnas do tempo ainda antes de a água lá ter chegado.

A fotografia foi tirada em 12 de Setembro de 2013, numa visita geresiana inteiramente dedicada ao legado deste povo. No dia anterior visitámos o Museu Etnográfico de Vilarinho da Furna, onde foi reunido parte do espólio cultural e histórico da aldeia. No dia, revisitei Vilarinho e fiz depois um percurso pela Serra Amarela, revivendo os antigos trilhos romanos e de pastores. Estacionei depois o olhar no alto de uma penedia sobre a albufeira, por onde deixei uma rememoração da caixa com as Folhas da Lei de Vilarinho, em forma de Contos da Montanha. Já no regresso, o manto de água e de silêncio coube-me na memória da imagem. Perderam-se contudo as ruínas da antiga aldeia, cujas formas esquecidas se distinguem com algum custo, lá em baixo. Assim está Vilarinho da Furna: desapareceu! Contudo, em dias em que o nível de água na albufeira está mais baixo, é ainda possível calcorrear algumas das suas ruelas perdidas.

Nesta viagem pelo tempo, e também por mim, tive a companhia inspiradora do mestre Torga, que soube como ninguém transformar em palavras a beleza quase inefável destas montanhas, por onde gostava de reencontrar-se, e a vida das suas gentes:

“Viam a luz nas palhas de um curral,
Criavam-se na serra a guardar gado.
À rabiça do arado,
A perseguir a sombra nas lavras,
Aprendiam a ler
O alfabeto do suor honrado.
Até que se cansavam
De tudo o que sabiam,
E, gratos, recebiam
Sete palmos de paz num cemitério
E visitas e flores no dia de finados.
Mas, de repente, um muro de cimento
Interrompeu o canto
De um rio que corria
Nos ouvidos de todos.
E um Letes de silêncio represado
Cobre de esquecimento
Esse mundo sagrado
Onde a vida era um rito demorado
E a morte um segundo nascimento.”

Vilarinho da Furna

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