Memórias do futuro

Memórias do futuro

Saí de casa como se abandonasse tudo o que tinha vivido até então. Senti-me, por um instante, mais forte que o próprio fim, a caminho de um encontro com o passado. Fiz-me numa vingança de vontades, com a alma desvanecida pelas intempéries da sorte. Desci a escadaria e, algo trôpego, saí para a rua. Os outros sentidos foram de imediato assoberbados pela indefinição e dei um passo para trás. Rendido às hesitações, dei outro passo para trás e fechei o olhar numa coragem fugidia. Estava cansaço de andar atrás da vida, semana após semana, num amontoado uniforme de experiências, como se todas as minhas linhas tivessem sido delineadas por um sonâmbulo errante, talvez o escritor que sonhei ser, pelo menos até notar que a minha vida tinha sido remediada a resolver problemas burocráticos aos munícipes, numa sala a abarrotar de papéis e a cheirar a tédio. As mesmas visões, os mesmos sons, os mesmos paladares, os mesmos tatos e os mesmos cheiros, dia após dia.

«Que se lixe!», decidi. Arrastei a perna aleijada e cambaleei a outra. Firmei a vontade e restabeleci o andamento, numa afronta sentida à metade doente de mim. Escondi-me então da mentira e do medo com que enfrentava a rotina dos dias e foi sobretudo a memória que me fez descer a avenida Emídio Navarro em busca de Viriato. Acho agora que não era uma memória do passado, mas sim de um tempo que ainda estava para vir.

Travei a marcha sobre o Rio Pavia e deixei-me ficar a contemplar os costumes exíguos que via passar em sorrisos fechados e cumprimentos usuais, numa ausência do toque. Pressenti que alguns olhares me identificavam pelo episódio com a Sónia, ocorrido mesmo ali ao lado, mas preferi ignorar. As pessoas pareciam-me casulos acanhados em pequenas vidas, que deambulavam, incautos, por felicidades casuais, à espera que alguém lhes decidisse a existência. A montante do rio formava-se uma lagoa onde as tonalidades escuras iam-se adensando numa poluição aceitável. A jusante da minha vida descortinava um marasmo contrafeito; uma existência incompleta e repleta de inconsistências latentes, súmula das imperfeições do mundo. Até ao fim.

Desviei o olhar do passado e prossegui, passando pela Casa da Ribeira. As árvores eram príncipes desistentes, com as folhas a adornarem o espaço com uma beleza outonal. Era o meu caminho da vida, entre a injetividade do tempo. Ergui-me depois e encarei o futuro, avistando a figura altiva sobre a rocha, numa tonalidade esverdeada, longínqua e inspiradora. Acelerei o passo inconstante e firmei a determinação num olhar audacioso, cambaleando como um pêndulo à procura do tempo perdido.”

in O tempo inquieto


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