Estudasses!

Estudasses!

“Estudasses!” – Esta expressão tem atravessado décadas e persiste como uma máxima apetecível para nos referirmos sobre uma situação em que conseguimos, de forma orgulhosa, vencer alguém pela razão ou oportunismo. É possível que todos nós já a tenhamos escutado ou proferido. Contudo, a sua abrangência pode estar a cair em desuso. Não porque tenhamos ficado menos pretensiosos, mas porque o estudo convencional, só por si, perdeu alguma preponderância na forma como pode ajudar alguém a vencer desafios e a ter êxito.

Na geração anterior, a conquista de um “canudo” universitário era quase uma condição necessária para a prossecução de uma carreira com sucesso, havendo naturalmente também contraexemplos de tenacidade. No Portugal do século XX para que alguém de uma classe média-baixa chegasse à universidade teria primeiro que se licenciar em utopia. Mas a vida não esperava por ninguém e era indispensável ajudar nas despesas da família. Os primeiros ciclos eram interrompidos pela necessidade. As crianças deslizavam com um sorriso amargo para o trabalho, deixando para trás um vazio de brincadeira e aprendizagem. Se perguntassem por que tinha de ser assim, recebiam a lição à estalada: “É a vida! No meu tempo era pior!”. E era, ninguém deve duvidar. Todos nós, de forma orgulhosa ou escondida, carregamos na alma os calos da vida das gerações precedentes.

Por razões várias, os portugueses sempre valorizaram e respeitaram em demasia os epítetos sociais e estatutos profissionais. Afinal, vivemos num país de engenheiros e doutores. Este paradigma fez com que, também, quem não teve a oportunidade de continuar a estudar adiasse o sonho por uma geração para que os filhos o concretizassem. De cada vez que alguém o conseguia, era toda se toda a família se licenciasse. Para trás ficava um esforço familiar acrescido pela esperança do sucesso. Endividava-se o passado por um sonho no futuro. O que antes era utópico passou a ser concretizável. E Portugal foi estudar para a universidade! Contudo, algo mudara entretanto.

MatrixEntrei para a universidade no rememorar da esperança. Aproximávamo-nos do final do século e do milénio. O mundo estava unido na celebração e existe em cada recomeço um reavivar dos votos no futuro. A universidade era a medida certa de todas as expetativas. Foi também por essa altura que surgiu o filme “Matrix”. Recordo-me que saí da sala de cinema com os horizontes desmedidos. A estória torce de tal maneira a realidade que é inevitável inquietarmo-nos sobre o que nos rodeia, questionando o que até então tínhamos por garantido. O filme assenta precisamente sobre esse paradigma: existe algo de errado neste mundo; não se vê e apenas alguns o pressentem. Um futuro distópico esconde-se atrás de uma realidade aparentemente normal. Na altura, ainda não poderia imaginar (ou preferia ignorar, no conforto de quem acha que tem tudo controlado), mas o mesmo tinha acontecido com o mercado de trabalho português. Às escondidas, uma nova realidade assentava entre a poeira dos dias a haver. Com a passagem do tempo, o que era promissor passou a ser arriscado. Ainda assim, o sonho prevaleceu. Não se pode viver em universos distintos e ubíquos.

Concluí a universidade e chegou então o momento de enfrentar o trabalho. Um mundo paralelo, entre o silêncio das sombras, espreitava de soslaio. Sempre existiu, não se via e apenas alguns o pressentiam. Fui então levado para uma sala escura num edifício abandonado. O ar rarefeito e bafiento criou-me um baque na alma. Na sala apenas existia um cadeirão, que estava voltado de costas. Ao aproximar-me, o cadeirão virou-se e vislumbrei um homem de aspeto macilento e pesado. Durante a nossa conversa revelou-me o que tinha acontecido ao mundo laboral; misturou o passado, o presente e o futuro numa amálgama de expetativas distorcidas. Revelou-me uma estranha estória sobre uma realidade escondida do mercado de trabalho, num futuro rodeado de dúvidas. No final, inclinou-se para mim, estendeu os braços e abriu as mãos. Em cada mão tinha um comprimido, um azul e outro vermelho. «Continuar no sonho ou dar um passeio irreversível pela realidade?», perguntou. Na verdade, a pergunta era apenas uma formalidade e a perspetiva da escolha era apenas uma ilusão.

Univ. AveiroRodopiei depois a vida pela precariedade laboral. O mercado de trabalho atirou-me de um lado para o outro, sempre com a expetativa de que melhores dias viriam. E vieram. Contudo, outra mudança estava prestes a transfigurar a realidade. O mundo voltou a mudar, mas Portugal persiste em chegar atrasado a cada mudança. Com o coração perto da boca, o fôlego dos portugueses foi-se esgotando entre as miragens do que sonhamos ser. O Homem sempre se entreteve com os mais variados afazeres. Porém, o conceito de profissão é relativamente recente. Mais recente ainda é a ideia de que a felicidade de alguém se concretiza numa profissão. Encurralada pela inoperância e pela falta de oportunidades, uma geração qualificada viu-se forçada a procurar alternativas no estrangeiro. Décadas antes, outra geração menos preparada já o tinha feito; a diferença é que a migração deixou entretanto de ser tão encoberta. Os telejornais passaram a abrir os noticiários com as lágrimas de despedida dos que partiam e dos que ficavam. O mundo continuou a rodar e a vida prosseguiu, indiferente e despreocupada. E, verdade seja escrita, numa perspetiva universal e intemporal, estes problemas são irrelevantes. Mas somos humanos, logo inquietamo-nos.

Aqui e acolá continuava a escutar a mesma expressão: “Estudasses!”. Como se fosse uma voz perdida da razão, mais uma vez, acedi. Desta vez, no final, já não fui levado para uma sala bafienta. Sabia o que me esperava. Ainda assim, com as mãos gretadas pela esperança, lancei-me ao amanhã. Mas foi-me pedido para aguardar mais um pouco. O desinvestimento ainda grassa por este país e o oportunismo vai dando de comer a muita gente, que, tal como escreveu Cervantes, “isto de herdar sempre apaga ou consola no herdeiro a memória ou a pena”. Entre as dúvidas, questiono onde está a ponta da razão. Seremos nós os culpados? O que importa mudar no nosso ensino? Tenho bastante relutância em arrepender-me das minhas decisões; sempre fiz o que me parecia o mais correto. É inquestionável a mais-valia do ensino. A capacidade de aprendizagem talvez seja o aspeto mais marcante do ser humano! Porém, neste país, temos de aprender a pesar o tempo e os sacrifícios que a prossecução dos estudos acarreta. E nem sempre pode valer a pena.

Será que poderemos continuar a dizer «Estudasses!»? Talvez sim. Porém, por segurança e numa perspetiva eminentemente prática, talvez seja melhor complementar: «Estudasses… e rezasses para que te fosse útil!»

Pôr-do-sol


 

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